domingo, 31 de janeiro de 2016

Between People

Vou contar uma história. De um encontro. Não é um twitter. Tem mais de 140 caracteres. Se puderem leiam. Mas mais que isso, vistam-se da pele destas pessoas. Pensem na existência. A vossa e sobre a cultura. Exactamente aquele terreno onde se atiram sementes e um dia...nascem belas árvores com raízes fortes e seguras. A olhar para o horizonte sem fim. Os vossos filhos.

Venho de um encontro cultural onde se fazia um olhar sobre a existência. Entre dois, que somos cada um, o pai e a mãe. Pelo menos. Entre pessoas. Entre culturas diversas. Porque somos dois, somos muitos, entre culturas, em cada existência.
Uma convidada especial, uma senhora escritora senegalesa a viver desde sempre em Bruxelas. Encantei-me com ela. De uma sensibilidade rara e poesia tanto nas palavras quanto nas histórias. Uma delicadeza e sabedoria que se adquire com as experiências de vida. Ficámos de nos reencontrar porque percebemos que a nossa conversa vai demorar a escrever-se. Tem muitos versos, em capítulos por concluir.

O assunto era a diversidade e as comunidades que vivem na Bélgica, de várias origens, que estão a conhecer África, parte integrante da sua cultura e origens. Com escritores entre vários outros artistas,jornalistas e tantas outras formas de existir e idades. Debateu-se o racismo, claro. Os vários tipos de discriminação. O que devemos fazer para conviver em paz e sermos melhores seres humanos com as nossas diferenças. Buscando conhecimento é uma das chaves, uma das razões do debate.
A minha intervenção debruçou-se um pouco na História do Continente Africano, de como foi repartido no final da I GM por interesses estratégicos, do colonialismo, da escravatura e da separação que aí começou. E da minha própria existência, das lutas contra a discriminação e das questões que já tive sobre quem sou.
Na sala entre várias nacionalidades era a única filha de um filho de um regime colonial que se revoltou contra o colonialismo e o fascismo em vigor, e a única que absorveu várias culturas e se sentia confortável com o facto de ser várias existências. Nem sempre foi assim. Porém de certa forma ultrapassei há alguns anos as questões que se levantavam ali.
Não porque os outros não se sintam confortáveis com as suas peles, mas porque ao ouvi-los um por um a questionar se devem saber mais sobre as suas origens e o distanciamento que alguns trazem delas, se são mais africanos ou mais europeus, disse-lhes que olhando para cada um deles me via tão diferente no entanto era um reflexo de cada um.
Somos nós como foi dito por um artista plástico branco de origem marroquina e judia. Contou ele que quando alguém o tenta colocar uns degraus abaixo da sua condição de igual, ele começa a resposta com um simples: "nós" colocando-se de imediato no lugar do outro como se ele próprio fosse racista esbatendo de imediato as diferenças que insistam em ter...
Naturalmente que precisei de contextualizar a contemporaneidade do tema.
Algures lá atrás na história humana sem qualquer humanidade-está cientificamente provado por provas dadas, que adoramos sangue, pela nossa genial e permanente arte de fazer guerra- decidiram que nós somos diferentes.
Para nos dividirem com rótulos como os tupperwares que colocamos no congelador: caril de galinha, falafel, cozido à portuguesa, sopa de legumes, cachupa d´atum, bóbó de camarão ou pratos congoleses, senegaleses e nigerianos.
Caixas iguais e conteúdos diferentes por isso colocamos rótulos. Necessários ou não.
No caso da História Humana não são apenas desnecessários como abusivos e incitadores de violência: somos o mesmo conteúdo em embalagens diferentes.
Usamos um veículo para as nossas viagens por aqui e esse veículo pode ser um ford, renault, fiat, bentley, tuk-tuk, bicicletas(as kardashians e o ronaldo usam ferrari). Quem guia tem o mesmo código genético.
Não precisamos de rótulos, mas precisam que os tenhamos para nos separarem, quando nós somos todos exactamente pequenos pedaços extraordinários da mesma unidade. Não estamos separados em nada.
Enquanto estivermos entretidos a fazer guerra uns contra os outros, os que criaram os rótulos e, os mantêm vivos, vivem extraordinariamente ricos e felizes.
Eu diria extraordinariamente infelizes porque lhes falta o sal. A massa deles talhou. E eu sinto pena dessa gente que é tão carente que nem Freud os iria conseguir entender.
Este filme que me continua a chocar chama-se racismo/discriminação:
-Contra pretos, brancos, indianos, hispânicos, árabes, gays e lésbicas, judeus, homens, mulheres, quantos mais rótulos houver maior as divisões, mais guerras, mais alargada é a base da manipulação, mais interesses obscuros se desenvolvem.
Inevitavelmente temos de continuar a falar do assunto diversidade que traz o racismo acoplado, para o conhecermos e erradicarmos.
Como a esquerda, direita,centro, divisões políticas contemporâneas. Mais uma vez o uso de rótulos para dividir.
Existe separação versus união. O papel da minha geração e das futuras é contrariar este caminho. Consciencializando-nos por seguir o caminho do "nós".
Este foi o meu testemunho. Há sempre alguém que lê e que se reflecte ou que ganha com ele.
Como eu ganhei hoje ao conhecer os olhares das existências de Congoleses, Nigerianos, Senegaleses, Marroquinos, Holandeses, Belgas e outros. Cada um com uma história bela. De dor, discriminação, falhanço, sofrimento, alegria, sucesso. Iguais a todos "nós".
"Between People" foi a musica (lindíssima) de músicos do Benin, que abriu o debate.
São também estes momentos que enriquecem a minha vida. Nestes domingos especiais.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Um pouco de África...

Há 132 anos África era dividida, numa conferência, a régua e esquadro, por ocidentais que mal a conheciam.
O Continente com nome de mulher e cobiçada por tantos homens. Os que vêm de fora e os seus filhos. Ofereceu-se porque nada lhe falta. Toda a sua riqueza está à mão de colher. Dá-se a quem a quer semear e dela viver.
É um passado que se faz presente.
Não é prostituta porque não se vende. Mas como uma escrava venderam-na, usaram-na, sujaram-na a belo prazer de um vício como a usura e a ganância ilimitada como se de sexo obsessivo e cego se tratasse. Porque ela deixa assim quem nela coloca o olhar. Obsessivos e cegos. Com uma compulsão para ficar ou para voltar.
Mas ela continua a ser docemente feminina e matriarca, oferecendo o seu regaço rico de bens maiores que os materiais e os seus seios perenes onde tantas crianças, homens e mulheres se alimentam desde o início dos tempos.
Direi que 99% da tribuU alargada aqui nesta rede vem, está, viveu, nasceu em África. Ou então cheirou e bebe África, deita-se com o continente que abraça todos, bebeu a sua água, nadou nos seus rios e oceanos, lambuzou-se de mangas e papaias nas suas areias, comeu os seus frutos do mar.
Como uma tatuagem a marca fica indelével na pele, na mente, na memória, no coração, na alma. E no espírito que vem dos nossos antepassados que nos lembram de onde viemos.
Se eu fosse poeta escrever-lhe-ia, a esse continente amado, a essa mulher de corpo belo e cheio, um sem fim de poesia tão grande quanto a sua extensão, tão bela quanto as suas terras, tão doce quanto as suas frutas, tão quente quanto o calor dos seus verões, tão fresca e colorida quanto a sua diversidade.
Honra-me esse pedaço de terra, num pequeno pedaço onde enterraram o meu umbigo, nesse continente onde nasci, onde vivi, onde chorei, onde perdi, onde semeei, esperei e colhi, onde ganhei e fui feliz.
Onde irei voltar, onde irei morrer e honrar o sangue dos meus ancestrais.
Conhecer um pouco mais da sua tão pouco conhecida História, tão vasta e curva quanto o seu corpo, é descer pelas minhas raízes até ao profundo âmago e conhecer-me também.
Obrigada terra mãe por tudo o que me deste e continuas a oferecer. Eu só , quero dar-te a conhecer.



Uma história minha com o Mestre Malangatana


-Mestre preciso de um favor teu, aliás dois...fiquei a olhar para a pintura que estava quase a terminar. Ele estava de pé na larga varanda da sua casa. Sentei-me nos degraus que davam para o jardim.
O calor apertava os sentidos, as mangas deixavam-se amadurecer e enchiam o ar de perfume adocicado que abria o apetite. Nem uma folha se movia. Havia quadros a óleo, serigrafias, quadros, quadros, quadros enormes, por todo o lado, até nas escadas, como eu nunca tinha visto.
-Senta-te que eu ainda vou demorar. Tens tempo?
Ele sabia que aquela era uma pergunta sem resposta. De todas as vezes que ia à sua casa não levava tempo. Ia com o tempo e ficava nas mãos do tempo. E dele. Nunca tinha estado com nenhum pintor. Vê-lo pintar era uma bênção e um descanso para mim. Transportava-me.
-Queres chá ou sumo?
Pediu sumo para os dois e ali fiquei a jogar conversa fora enquanto ele me ouvia e pintava.
-Só não gosto das caras feias que pintas. Assustam-me como se eu fosse uma criança.
-São os horrores da guerra Moçambicana, tu sabes! Foi assustador e é isso que digo nos seus olhares. Mas também pinto coisas bonitas.
Por exemplo quando viajo de avião faço desenhos para cada membro da tripulação e ofereço-lhes. Como forma de agradecimento por me terem tratado bem enquanto estava vivo.
Sabes, para mim, de cada vez que viajo de avião acho que vou morrer e por isso faço os desenhos para lhes oferecer.
-Mestre, se morrer num acidente de avião acho que ninguém se safa... Mas pelo menos a tripulação morre com um desenho seu. Eu vou depois procurá-los...
Rimo-nos ambos.
Tivemos esta conversa uns bons anos antes dele morrer faz hoje cinco anos. Tivemos muitas mais porque eu adorava visitá-lo e ficar naquela varanda a vê-lo pintar. Eram das minhas escapadas preferidas em Moçambique no longínquo ano de 2001.
Os favores que lhe fui pedir ele fez, como sempre fazia quando alguém lhe pedia alguma coisa.
Nesse dia fui pedir-lhe para vir comigo a uma palestra que eu iria dar a falar sobre voluntariado, na promoção do Ano Internacional do Voluntário e ele seria o meu convidado de honra.
Perguntou-me sobre o que eu gostaria que ele falasse e não resisti:
-Mestre gostaria que viesses contar histórias (Karingana) de escravos.
-Dos que foram de Moçambique trabalhar para as roças de São Tomé queres? perguntou-me ele
Ele estava sempre a contar-me histórias de uma beleza triste como as suas pinturas.
E assim foi. Aquele foi um dos dias mais especiais da minha vida e do meu trabalho para os Voluntários das Nações Unidas. Contou histórias, cantou, dançou e como era costume, encantou.
O segundo favor?
Foi pintar a maior e mais bonita tela que já vi até hoje. E de novo ele acedeu.
-Quero que seja muito colorida e alegre disse eu quase a implorar.
-Diz-me que cores queres e vais ter!
Fizemos uma lista de cores e parecia uma criança na África do Sul a comprar as cores que juntos tínhamos escolhido.
Levei a tela para ser admirada na Suiça na conferência internacional dos voluntários. A tela foi oferecida aos voluntários moçambicanos.
De uma beleza sem par. Sem preço.
-Tens de fazer aqui a tua assinatura disse-me o Mestre.
E eu fiz, dei umas pinceladas de azul e amarelo ao lado das dele.
O Mestre Malangatana era um dos maiores voluntários e activistas que eu conheci. Por diversas causas.
Com ele muito aprendi. Na varanda da sua casa a beber sumo, onde tantas vezes fui pedir um favor qualquer, só conversar, ou em tantos outros lugares que estivemos juntos ou a ouvi-lo contar histórias. Teria tido também, uma carreira brilhante como contador de histórias.
Uma qualidade especial?
Era um homem que verdadeiramente se empenhava para dar aos outros mesmo quando já nada tinha porque tinha dado tudo. Eu sei, eu vi, eu conheci este seu lado e era às vezes de lágrimas os olhos que percebia o seu desespero por não ter. Era igual à das caras que pintava. Dos vencidos pelos horrores da guerra. Ele era vencido pelo horror da pobreza dos que o rodeavam. E por isso não podia parar de ajudar.
Mestre? Posso pedir-te um favor?
Nunca deixes de desenhar as caras felizes onde estás. Um dia vou-te visitar na tua varanda para jogarmos conversa fora e olhar para elas sem nenhum horror. Porque tu foste um ser verdadeiramente belo.

Onde estiveres é certamente um lugar colorido e bonito.
Kanimambo Mestre!


domingo, 3 de janeiro de 2016

"Filhos de um Deus menor"

Este texto é dedicado aos artistas meus amigos (muitos felizmente), em especial às artes do meu coração a escrita e a dança. Na minha curta viagem a Lisboa fiquei a saber de gente minha que luta num terreno de guerra e como um refugiado o quer deixar e descobrir um porto de abrigo seguro. Para salvar a sua vida.
Mas a vida não deveria ser assim. São talentosos nas suas áreas e nada mais pedem que viver na e da sua arte sem mendigar.
Mas Portugal considera-nos (incluo-me) os "filhos de um Deus menor", quando se quisermos ver Deus, é na arte na qual nos exprimimos que encontramos Deus. Na arte é ele próprio e as artes são os seus filhos. Como na Natureza que matamos estamos a matar as expressões maiores de arte divina. Seja lá quem for Deus e mesmo nem acreditando nele.
Os artistas nada têm de menor. Muitos destroem a sua arte, transformam-na num filho menor porque dela não podem viver.
Para onde vamos? Queremos apenas trabalhar desenfreadamente para viver e viver para trabalhar desenfreadamente?
Inquieta-me e aflige-me que os artistas, os filhos maiores da arte, porque criam, não podem viver da sua arte nem para a sua arte sem morrer de fome, sem se vender, sem ter de "cair na realidade", sem ter um chapéu de protecção, uma cunha, ou alguém que o mercantilize. Se eu quiser trazer o meu livro para a luz tenho não apenas de ser o escritor, mas o revisor, o editor, o promotor/vendedor em todo o lado. E isso inquieta-me porque não sei ser as outras coisas para além de escritora.
E o livro?...fica nas prateleiras, esquecido de e por todos. Esquecidos estão quase todos os outros artistas de quase todas as artes.
Sem arte e sem cultura não há sementes de futuro que germinem.Portugal tem bons fertilizantes mas o seu útero está seco.
Alguém consegue imaginar-se a viver sem o fascínio, a alegria, os mistérios da musica, da dança, da pintura, da poesia, das histórias em livros, num palco, num cinema? Imagino que não, porque somos todos feitos da mesma massa. Merecemos muito mais.
O melhor da vida está nas artes. Então aflijam-se e inquietem-se comigo por todos os artistas porque são eles os criadores, os dadores do sangue universal. Do que a vida tem de maior.
"Filhos de um Deus menor"
Era uma vez um artista que fazia arte com o coração por isso o chamavam He-art-ist. Na arte aprendia a paz. No seu colo se deita a observar o oásis que respira. Na arte requebra-se e dança até ficar sem fôlego. Até perder a tenda, o camelo, a bebedeira. A arte engole sôfrego. O que a vida lhe traz. Com a lua por céu faz de equilibrista, sem rede de salvação para o artista. Desabituado de protecção, o artista despe-se, com a arte faz o seu traje, a sua canção. Na arte, aprende a ser um colibri lançando-se de asas abertas em voo, largando braços que o fecham, em busca de beijos de baunilha que em liberdade o fortaleçam. Na arte amadurecem, ao continuar sem entender os mistérios, os milagres, em asas de aço crescem. Fazem da arte a arte de viver, mesmo quando o olhar de lágrimas se cobre e se torna turvo.
O artista é ele próprio, mesmo quando não sabe quem é. Descubro que também tenho coração de artista e a arte no coração.
Sonhamos ser exclusivamente da arte, por ela possuídos, nela amados. Mas tantos são os traídos, os rejeitados, os ignorados e até os vendidos.
Pudera ser casada apenas com a minha arte...para no sono que durmo, fazer como os artistas e criar todos os sonhos acordados.