segunda-feira, 30 de junho de 2014

Traços...na RTP Africa

Dia 7 de Julho às 16:50 na RTP África
Talk Show Bem-Vindos
Vou estar descontraidamente à conversa com a jornalista Isilda Gonçalves.

Sobre o livro, o que escrevo, o meu percurso, as minhas viagens, os meus momentos, a minha tribU que me fez chegar até aqui. Porque acreditam no meu trabalho.

Tenho a agradecer a muita gente. Estão na minha triBU.

Escrever exige muita solidão e muito apoio.
Para aqui chegar contei com alguns personagens principais a urdir a trama :). 
Os meus irmãos na TribU que nem os consigo contar.
Profundamente grata estou por este universo me ter presenteado com a vossa vida na minha.

Aos meus pais e muito naturalmente a quem me levou para este caminho há muitos anos, o meu avô Manuel e a minha avó Fernanda a quem este livro é dedicado.


Eu tenho tantos irmãos/as que não os consigo contar...
E uma noiva muito formosa que se chama Liberdade...
Athahualpa Yuapanqui

na voz de Andres Calamaro e Diego el Cigala



Mini Conto - Amêndoas doces de travo amargo


Amêndoas doces de travo amargo

O rio era largo e muito calmo. Generoso e tranquilo como ela. Profundo. Sabia para onde ia. Sabia qual o caminho e não deixaria que o seu fluxo fosse interrompido. Na viagem, maravilhava-se com as margens e seguia feliz, detendo-se para descansar nos pontos mais baixos, correndo alegre nos pontos mais altos, apreciando cada instante. Como Íris.

Há horas que viajávamos. Escolhemos o comboio por ser a forma de observarmos o que a vista pudesse alcançar e com ela absorver a beleza das paisagens que se ofereciam.
Viajar de comboio é como escutar uma partitura musical. O fim não é chegar ao fim da viagem, é estar na viagem até ao fim.

É ir descobrindo as sensações e experimentando o espanto, o assombro das descobertas. Como em qualquer viagem. Retiramos dela o que dela fazemos nascer. Ficamos com o que aprendemos do que observamos. 

Falámos pouco. Não era necessário. Entendíamo-nos também no silêncio. Foi uma das razões que nos fez ficar um com o outro ao longo do tempo.
Íamos para junto da minha família contar-lhes a nossa decisão. Sermos pais. Dar continuidade ao nosso sangue. A nós mesmos. Saber se seríamos capazes de dar a mão na construção de uma terceira vida era a nossa próxima etapa. 

Um caminho como o de tantos outros à nossa volta. - “Não quero ir para mais lado nenhum. Apenas ir, nesta estrada, nesta direcção contigo”, dissera-me Íris. Não se arrependeria, assegurava-lhe eu, espantado com o destino que me conquistava cada dia, com a sua rasteira de sabor perfeito.

As nossas mãos davam-se em silêncio e no silêncio tamborilavam os dedos. Pousadas nas coxas desta bela mulher.
Ouvíamos a cadência do ferro sobre os carris como se se tratasse de uma sinfonia. Lentamente o sono apoderou-se de nós e deixámo-nos envolver pelo ritmo. Adormecemos com as cabeças a tocarem-se.
Não fazia muito tempo que nos tínhamos deixado vencer pelo sono quando chegámos ao nosso destino.

Íris era uma mulher linda de longos cabelos negros, revoltos, que tantas vezes prendia com lenços garridos ou em tranças, nariz afilado, olhos pequenos cor de amêndoa. Corpo pequeno de formas generosas. A pele de seda, negra como azeviche, demorava-se nas minhas mãos, tantas vezes me perdia a acariciá-la com admiração.
Tudo nela indicava generosidade. Viria a saber que era muito mais que generosa. Por detrás das maneiras simples e educadas, escondia também uma enorme ferocidade de carácter.

Quando olhou para mim, naquele fim de tarde à saída do metro e me pediu desculpa, fiquei preso. Rendido ao tom de voz, ao olhar doce e à maneira generosa com que me disse: ”desculpe”. Se um homem se pode sentir subjugado e calado por razões desconhecidas, ali estava eu sem saber o que dizer perante aquele ser quase frágil.

Vinha a sair apressado e ela a entrar carregada de cadernos. Chocámos e o seu carregamento foi parar ao chão. “Desculpe”, retorqui enquanto a ajudava a apanhar os cadernos que devolvi.
Olhámo-nos e sorrimos. Sorriu olhando-me profundamente. Naqueles segundo senti que entrava dentro de quem sou, sem me pedir licença e me escavava, procurando os segredos do meu universo. Baixei os olhos por sentir a invasão. “Fica a saber os meus segredos” dizendo-lhe carinhosamente devolvi o sorriso. Levantámo-nos e ela agradeceu, não dando importância ao meu comentário.

Fiquei ali parado a olhá-la enquanto se afastava depois de me agradecer. Bastou-me vê-la sorrir para saber que aquele era todo o agradecimento que precisava dela. De repente acordei daquele sonho momentâneo e já ela tinha desaparecido.

Estava atrasado e precisei de correr. Os ensaios corriam muito bem e a peça estreava daqui a poucos dias. Tínhamos decidido que começaríamos mais cedo até à estreia. Comecei por isso a estar ali àquela hora, naquela entrada do metro. Durante os dez dias que restavam até à estreia, naquela entrada, todos os dias à mesma hora esperava vê-la.

Todos os dias ia a correr, atrasado para os ensaios. Todos os dias perdia um pouco da esperança que me animava de poder reencontrá-la. Todos os dias se reacendia a esperança de ser o dia seguinte o dia em que a sorte a traria até mim.

Sentia-me empenhado, vibrante, com medo, angustiado e maravilhado. Era a estreia da peça e o teatro estava a ficar cheio. Era hora de me preparar. O meu último pensamento foi para a estranha de olhos avelã, pele azeviche, sorriso doce e generoso que em mim tinha mergulhado e tão bem me conhecia.

A partir daquele momento o meu personagem Hémon tomaria conta de mim e apenas teria olhos para se deixar cegar pelo amor à sua Antígona. Até à morte trágica.

Acabou de se calçar quando alguém entrou e colocou um ramo de flores na sua bancada. Lírios, a sua flor preferida. Pegou num e guardou-o no bolso da frente. Olhou-se e agradou-se com o resultado. Os seus amigos aguardavam-no para um jantar de celebração.

Não conseguia tirar os olhos dela. Ali estava no grupo dos seus amigos que o aguardavam junto à porta de saída dos artistas, enquanto recebia abraços e palmadas nas costas. Parabéns diziam-me mais alto do que seria fácil ouvir. Mas não os ouvia. Apenas tinha os meus sentidos disponíveis para ela. 
A curiosidade dilacerava-me o coração. Quem era? O que fazia ali? O medo aprisionava-me a mente. Não a deixes fugir! Corre, agarra-a.
Não me podia distrair e sem poder fazer muito, entreguei-me aos abraços dos amigos com a atenção redobrada para ela. 

Um dos meus grandes amigos trouxe-a até onde eu estava.” Jules, esta é a Íris, minha colega assistente na faculdade e apaixonada por teatro. Se o meu melhor amigo estreia hoje, tinha de a trazer, afirmou muito seguro”. E continuou, “ convidei-a para o nosso jantar, para ver se larga os cadernos. O mundo do teatro e dos artistas é sem dúvida mais interessante e rico do que os trabalhos insonsos dos seus alunos”.

Quase que ali mesmo me poderia ajoelhar em forma de agradecimento ao meu amigo Paul, como um tonto apenas sorri enquanto tirava o lírio do bolso e lho estendia, “Íris não te deixo mais ir embora. Serei o teu caderno de poesia”. Ao meu amigo que nos olhava serenamente apenas comentei “a Íris conhece-me já muito bem” afastando-me com ela,-“e eu quero saber tudo dela”.

De tudo me lembrei quando olhei para Íris, antes de a acordar quando chegámos ao nosso destino. Continuava a sentir-me maravilhado por ter encontrado tamanho tesouro como Hémon se sentia ao lado de Antígona. 

Os sentimentos não precisam ser representados. Representam sim e encerram a vida da nossa condição humana. Os segredos da nossa natureza.

Depois daquela noite as minhas representações foram-lhe sempre dedicadas.

Neste dia que o sol castigava com pujança a minha alma vestida de negro, cor da pele de Íris, fazendo-me lembrar a força da vida, sentado na companhia do rio, agarrava a caixa de madeira esculpida de um pequeno tronco da terra dela, que Íris mandara fazer a um artista de um mercado de rua. A caixa tinha esculpida uma máscara, símbolo das tragédias gregas representadas apenas por homens. 

Premonitória pensava eu agora. Nela guardei as suas cinzas e agora repousavam-me nas mãos, queimando-me, ali sentado numa das margens do rio. A vitalidade do sol lembrava-me a sua vida. 

Para mim já não havia vida com direcção. Não tinha desejo de me levantar. Não sentia vontade nem pressa de a entregar. Era a chuva fértil dos seus olhos cheios de vida que tudo fez desabrochar. Que com ela terminava.

Continua...


Pintura de Sidney Cerqueira



domingo, 29 de junho de 2014

Todos nascemos Mil vezes e mais uma,

Todos nascemos
Mil vezes e mais uma,

Nasci aqui,
Junto das mulheres de panos coloridos
Que enterraram o meu umbigo
Lavado no meu sangue
Na terra tinta burmedjo

Voltei a nascer quando cresci num país distante
Pintado com o sangue dos meus antepassados

Tornei a nascer quando o conhecimento do mundo
começou a ganhar espaço no meu universo

Nasci de novo, quantas vezes o amor
se encaminhou na minha direcção
Se acomodou e preencheu espaços sem fim
até sentir vontade de partir para outros lugares

Nasço de novo quando sinto vontade
de escrever um novo conto,
um poema, um pensamento,

Nasço de novo quando um livro me rapta e me liberta
Nasço quando a necessidade me leva a mudar uma e outra vez,
Nasço quando viajo sem direcção,
ou para novas moradas

Nasço quando descubro quem sou

quando a vida se experimenta em mim


Nasci tantas vezes quantos os abraços que ofereci
aos filhos de coração
Renasço quando me fecho nos braços o meu filho
quando entrego o meu coração no peito da minha neta

Nasço com cada amigo novo que entra e fica na minha casa
Nasço a cada nova descoberta de um arco-íris
que me deixa sem fôlego

nasci e continuarei a nascer, mil vezes e mais uma,
enquanto a terra que o meu umbigo acolheu,
continuar a sussurar:
vai por aí, vai,
nasce-te
as vezes que forem necessárias
por cada momento de encanto
faz-te ser ,
igual aos teus irmãos
até adormeceres num sonho
quando o teu umbigo te chamar
num soluço vindo da terra burmedjo
para te preparar o regresso
a um novo nascimento.


sábado, 28 de junho de 2014

Sou promíscua e polígama e gosto!

Na espuma dos nossos dias,

Diz o Rui Veloso numa das suas belas canções “É mais o que que nos une que aquilo que nos separa”.
Esse factor de união é a Língua Portuguesa, a Pátria de todos aqueles que nascendo em países distintos, em grupos étnicos diversos, com línguas e dialectos próprios e alguns bem antigos, têm esta maravilhosa língua comum. Com ela construímos laços.

Língua com 800 anos de vida, com influência de muitos povos que por cá deixaram raízes e construíram esta ponte, levada em caravelas até aos pontos onde ela é hoje o laço que nunca se transformou em nó.
Esta nossa língua com conforto, sabedoria, generosidade e de braços bem abertos, aceita a inclusão e ofereceu-se à mistura de vocábulos, de expressões, maneiras de dizer próprias dos brasileiros, dos angolanos, dos guineenses, dos cabo-verdianos, dos timorenses, dos macaenses, dos são-tomenses. Sem falsos pudores, vergonha ou preconceitos.

Não precisamos de nenhum Acordo para partilharmos todos a beleza, da riqueza desta Língua comum, nesta relação descomplexada e aberta. Promíscua e dada às poligamias. Onde nos podemos todos misturar e adoptar vocábulos, maneirismos de falar, ou manter os próprios.
Por ter tido a felicidade de nascer debaixo desta bandeira comum, amo esta Língua que me abriu portas para me relacionar com outras, vindas de terras onde nada mais partilhava senão a humanidade. E por natureza, também com todos os países que nela se expressam.

Facilitou-me a expansão do meu conhecimento e como pessoa. Obrigada Língua Portuguesa por seres como disse Pessoa, a “minha Pátria”. Por me ofereceres ao mundo na tua caravela.

É com muito amor que escrevo em teu nome.
É por amor que sou promíscua e polígama porque a minha língua me relaciona com todos os milhões que a falam por esse mundo fora, e, gosto!
Parabéns pelos teus 800 anos de História.



terça-feira, 24 de junho de 2014

Micro conto - Ausência


O lugar era perfeito. Sentia-se esmagado pela simbiose das cores, da luz e da energia que emanava da vegetação junto às águas do rio. Hoje ele também se sentia com aquelas cores, com aquela luz e energia que pulsava no sangue.

Quantas vezes a sua câmara captava os reflexos das sombras cinzentas da sua alma. Ali parado, com a máquina pendurada ao pescoço sonhava de olhos abertos. Sonhava a cores. O rosto dela estava ali à sua frente. O sorriso rasgou-lhe o rosto inesperadamente e brilhou sem razão. Por todas as razões aquele talvez fosse o melhor retrato a cores da sua vida que lhe tirava. Nunca o revelou.

Sentia de novo o momento em que sem pensar na razão teve vontade de a voltar a abraçar. Ela entregara-se sem pensar nalguma razão para não o aconchegar no peito.
Permaneceram a olhar-se. Sem fim.

Recordava-se agora sozinho e esculpiu o seu corpo na imaginação, nesse lugar secreto onde gravou a sua imagem.
Tinha marcas da ausência dela. Insuportáveis. Indeléveis. No corpo as deixadas pelo cheiro. A dor que sentia vinha da pele pêssego colada à sua. Na boca o beijo magoado com sabor a sal quando se misturaram as lágrimas de ambos.

O destino entretinha-se com brincadeiras misteriosas. Certamente que era algum anjo sentado lânguidamente numa nuvem no jardim de Éden a escrever estórias. Deveria ter sentido de humor, pensou. Muito humor com ironia. E sensibilidade também ou não fosse um anjo. O sorriso aqueceu-lhe o olhar.

Quando a viu naquele lugar improvável uma luz encadeou-os na direcção do outro. Inexplicavelmente sem que o tivessem sonhado encontravam-se ao fim de anos de ausência. Anos que tinha deixado de contar. Ali estavam frente a frente.

Jorraram aos gritos as palavras silenciosas no abraço sentido a que se entregaram. De novo as marcas regressaram como se apenas tivessem procurado refúgio temporário atrás de uma gota de suor, depois da última vez que se tinham amado.

Sem razão para calar o que tinha ficado interdito de ser dito, deixou que as palavras saboreassem a leveza da liberdade. Lavou-se nas lágrimas que se ofereciam com as palavras que calara. Secou-se no abraço que ela lhe ofereceu.

Com desassombro rogou-lhe ela que nunca mais partisse, porque do amor, ela, nunca se tinha ausentado. Deram-se as mãos, rumo ao desconhecido que sempre tinha sido o trilho, que ambos sabiam ser o único que existia.

Ali parado, com a máquina pendurada ao pescoço sonhava de olhos abertos. Sonhava a cores.


Finalmente ia chegar a casa e revelar o retrato que nunca antes se tinha permitido revelar.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Arte e repressão

O país está na forca sim! Enforcado. Preso pelos tomates! E dói!
E a liberdade de expressão significa podermos dizê-lo sem repressão vinda dos que não concordam connosco.
Recentemente escrevi sobre o facto de nos quererem ignorantes, em silêncio, sem pensar.Está no meu blog.
Sobretudo aqueles que através das suas artes, sejam elas quais forem) manifestam crítica e intervenção social. Não podia deixar de estar ao lado do jovem artista que simbolicamente com este retrato mostra o que a maioria pensa, escreve e diz. 
Porque se trata do estado em que estamos a sobreviver. E vai a tribunal responder por isso. Então eu também vou. É justo. Escrevo coisas piores do que a imagem que nos retrata como Nação. Porque amamos a nossa Nação. Que está na forca. E por isso a queremos longe das mãos dos nossos algozes.
As artes, todas têm pés para andar, o chão é que está feito de pântanos.
Num lugar onde educação e cultura cada vez têm um papel mais irrelevante para não estimular o pensamento, aceito gente que pense de forma diferente da minha, mas assumo-me intolerante para quem tem uma visão terceiro-mundista da vida. Sem pensamento ou sem coração.
Dizem que a felicidade pertence aos ignorantes. Então deve ser por isso que vejo tanta gente por aí, calada e feliz...


domingo, 22 de junho de 2014

Razões para sair da Matrix

«O mal está tão generalizado, tão disseminado que está transparente» Jean Baudrillard

É justamente neste momento que a minha fé e esperança se reacendem. Um asteróide atingiu a terra há milhões de anos e destruiu os dinossauros. Nós podemos ser o asteróide dos tempos actuais como bem relembra Noam Chomsky, com quem concordo. Como poetas, marinheiros, artistas, gente que pensa e gente que sente, também somos o asteróide capaz de mudar de repente e sem aviso o rumo que tomámos.
Todos sabemos que no mar, o vento pode mudar subitamente e desviar o destino do barco. É a nossa infinita capacidade de criar quando estimulados pela curiosidade, de imaginar, resistir, pensar, de se deixar ir, de reagir por impulso, todos estes elementos combinados que fazem de nós a massa capaz de construir de novo. De arranjar novos rumos, novos destinos. De ver o mal que se tornou transparente e corriqueiro e destruí-lo. Também somos o asteróide da renovação.
Estou inspirada a fazer do pedaço de tempo que me restar nesta minha passagem, uma fuga em grande da matrix em que vivemos «persuadidos a gastar o dinheiro que não temos, em coisas que não precisamos para criar impressões que não duram em pessoas com as quais não nos importamos» trabalhando infinita e de forma desgastante para obter esse dinheiro.
A revolução pacífica irá acontecer aos poucos. Eu vou dar um passo nessa direcção, como muitos já estão a fazer. Hoje uma ou duas pessoas e amanhã com muitos mais. Com todos aqueles que agarraram o lenço e não o deixaram fugir com o vento violento e repentino que nos varre.
Contra o vento que sopra, agarro no meu lenço para que não me voe e caminho. A dançar a minha dança para fora da matrix. Construindo o meu moinho de vento.

"Aqueles que foram vistos a dançar foram tidos por loucos por aqueles que não ouviam a música". Nietzsche.

Uma notável entrevista

sábado, 21 de junho de 2014

Reencontro

Micro Conto,

Ele chegou sem avisar. Aproximou-se lentamente sem pedir licença. Encostou-se-lhe ao  braço. Que olhar sereno disse. Sorri-lhe. Vem com os aniversários. Quando deixamos a vida acontecer. Posso-te fotografar? quis saber ele demorando-se no olhar. Sim, se quiseres disse-lhe ela, com um ar sem muito interesse. Vamos deixar a vida acontecer num jantar? Na companhia de quem gostamos, uma refeição cuidada e um vinho alentejano em conversa sem fim e sem princípio. Humm…prefiro vinho do Douro disse-lhe ela, olhando-o pela primeira vez com atenção. Ele continuou, e eu é que cozinho. Está bem, não vamos ter a primeira discussão. Desde que eu possa dançar à volta da mesa. Ele estendeu-lhe a máquina para ela olhar a sua própria imagem. Parece-me que te conheço desde sempre. Posso roubar-te um beijo disse-lhe ela? És uma feiticeira disfarçada de anjo disse-lhe ele, enlaçando-a pela cintura.

Como num livro que se abre e conta as histórias que encantam vidas, a vida de ambos abriu-se num livro com uma história comum, caminhando em paralelo. A vida demorou-se nos dois. Ambos se redimiram afogando os sentidos no oceano de prazeres e sabores que tinham para se trocar.
Durante anos dançaram, jantaram alternadamente pratos feitos por ele e por ela. Juntaram fotografias a dois. Beberam vinhos doces, vermelhos, secos, maduros. Partilharam frutos trocados nos lábios, com beijos quentes. Dormiram aconchegados no ninho que o corpo oferecia. Ele deixava-a adormecer enquanto lhe murmurava poemas ao ouvido e velava-lhe o sono. Despediram-se um cento de vezes mas regressavam sempre para o outro. O reencontro, combinavam, era no mesmo lugar da primeira vez.

Ela não apareceu da última vez. Ele permitiu que o tempo infinito se demorasse a esperá-la. O peso da ausência dela deu lugar à leve melancolia do vagar dos dias.

Sufocava nas lágrimas. Sem pedir licença ela chegou e deitou-se ao seu lado lentamente. Não se preocupou em fingir que não chorava. Ele respirou profundamente e com um último esforço, encostou-se-lhe, procurando o calor que o corpo dela emanava. Posso roubar-te um beijo pediu ela? Num suspiro junto de um murmúrio ao ouvido, como tantas vezes tinha feito, ele rogou-lhe para que não se esquecesse de lhe roubar os beijos que tivesse vontade.
Voltaria sempre para ela. Esperaria sempre por ela e ela tinha regressado. Ela murmurava-lhe poemas ao ouvido enquanto lhe velava a partida da alma. Roubava-lhe em silêncio os beijos que perdera. Beijos que carregavam palavras. Procuraram demorar-se ao descobrir a redenção daquele momento. Nunca se tinham perdido. 
Reencontravam-se.

sOLsTicío de Verão

Ali estava ela. A vida. Plasmada a cores garridas. Prisioneira de beleza azul como o mar. Tinha entregado a mensagem numa garrafa cor de solstício. Ao Sol que a entregara, radiante, e, lhe dissera, por ali é o teu caminho, deixando-a entregue ao ritmo das ondas, no oceano bravio e revoltoso, ou nas margens quietas e silenciosas. Quando a lua estremunhada deu um último beijo ao seu amor sol, numa despedida em busca de mais tempo, nasceu. Esse, o tempo, tinha-o pouco demorado, assim lhe tinha sido dito. Vai, apressa-te a ser. Um dia ouvirás as palavras «ser ou não ser». O quê? Não saberás, partirás à descoberta. Aprenderás com o caminho. Não te demores com quem te quiser indicar a direcção. Não te preocupes com o objectivo. Apenas com a corrente. Ela está à vista no teu coração. Flutua, mergulha, nada. E sê tudo. Vê tudo. Sente tudo. Quer tudo. És o esplendor e a força da aventura da criação. A manifestação dos teus sonhos impossíveis. És energia pura. Capaz de perceber a força intrínseca de quem és, de quem vais ser. Aprenderás que nada está errado no teu caminho único. Brilha, semeia, colhe, fortifica as tuas raízes. Se amares e não receberes na mesma medida, entrega numa garrafa ao mar que te recebe. Divide com a onda que se aproximar. Ela irá entregar a quem esteja aberto a receber a tua dádiva. Não morras com interrogações. Morre com a certeza de teres sido. Nesse dia partiu. Partiu em direcção à vida.

Nasceu no solstício de Verão.

Dedicado a mulheres vítimas de violência. Começar de novo de Ivan Lins com Gonzalo Rubalcaba

https://www.youtube.com/watch?v=RRHyVHUiRtk

quarta-feira, 18 de junho de 2014

50 anos

Sou hoje uma versão diferente comparada com o dia de ontem. Amanhã serei mais completa.
Chegamos incompletos e vamo-nos construindo. Espero partir como versão completa de quem me propuser ser. Hoje tenho uma ideia de quem sou, amanhã quem o saberá?
Recebi avisos sérios da vida e dizia-me ela: - se não corres riscos não te transformas, nem cumpres o teu papel de te tornares essa versão melhor no tempo que te restar.
Aprendi a obedecer-lhe. E a agradecer-lhe. Como ninguém está feliz sempre, aprendi a pelo menos sorrir diariamente. Se me virem sempre feliz significa que os comprimidos estão a fazer efeito…
Agradeço profundamente o meu meio século e a quem mudou a sua rota para cruzar o meu caminho. Hoje um caminho feito sobretudo de letras. Não saberia estar noutro. Mas se mudar amanhã, aceitarei.
Estarei a celebrar os 50 anos, no dia do meu nascimento, a apresentar os traços de uma vida de viagens, de novo em casa, em Santo André e na minha Ítaca. Tento perceber-lhe o significado e se ela não fosse, não teria partido nestas viagens. Que melhor poderia eu pedir?
Como uma sinfonia entre o allegro, moderato, lento, rápido, minueto a nossa vida é uma construção sinfónica.
Dancemos ao ritmo de mudança de caminhos, de quem somos, de quem queremos ser, de nos melhorarmos!

De mão junto ao coração e o sorriso que dele vem. Obrigada.

Regresso a Ítaca. A minha Ítaca. 
As minhas viagens rimam com Ítaca.
Cada palavra deste magnífico e grandioso poema é a minha vida. 
Foi-me oferecido pela minha amiga que percebe tanto de mim 
Isabel Duarte. 
Levei-o para dentro do meu livro. Fica lá eternamente. 
Representa-me para sempre.
Nas apresentações do livro o meu filho 
Guilherme  leu-o e a minha Tê também. Emociona-me sempre. Muito.
Partilho-o aqui e empresto-o ao meu filho 
Francisco  que o queria ler para mim.

terça-feira, 17 de junho de 2014

3º Mundo e o pensamento

Respondendo a um (a) lobotomizado (a) que criticou um dos meus textos, naturalmente escrevo. Gosto de críticas e confrontos. Que usem o pensamento. Não foi o caso. 
Respondo a todos os que continuam a tocar a música na mesma e única nota de “os portugueses estão mal habituados” e pergunto: O que significa a vida para vós? Mesmo que haja maus hábitos a corrigir, que os há.

De onde vem a cegueira que invadiu o sentir dos vossos corações e o branqueamento da razão no vosso pensamento?
A vida a que nos devemos habituar é a de ser miserável e deixarmo-nos subjugar por gente de pensamento terceiro-mundista?

Eu não acredito no 3º mundo, acredito que há pessoas que fazem tudo para convenientemente manter o 3º mundo, na medida dos seus interesses.

Ou no 3º e 4º mundo (em que nos estamos a transformar) vivemos mal habituados tamanho é o conforto? Tenho passado largos anos no chamado terceiro mundo e garanto que a visão dos esfomeados é ter uma vida livre, sem fome. Sem fome de nada do que pertence ao ser humano por direito inerente à vida. Tal como vem escrito na Carta Universal dos Direitos do Homem herdados da Revolução Francesa, a que vem nas Cartas das Constituições Democráticas, sendo a mais democrática a da RSA pós apartheid até chegar à Portuguesa.

Não sou do tipo de passar a vida a lamentar-me. Experimento a vida fazendo, agindo, indo à luta com ela. Deixando que ela me indique o caminho do que não posso controlar e dando passos para agarrar qualquer oportunidade. Sei ver com o cérebro e com o coração as maravilhas que me rodeiam e quero que todos os outros as vejam também. Porque esse direito nasce igual para todos.

Mas passo e passarei a vida a lamentar a visão terceiro mundista de quem nos quer nesse mundo e dos que julgam que esse é o melhor para nós.
Até passar para um universo paralelo, ou ver este universo em paralelo com a visão que tenho de um mundo desenvolvido. E o pior é que nos querem uns contra os outros. É o biscoito da manipulação e ainda há quem o coma e digira.

Em política não existem certezas nem verdades absolutas. Existe pensamento e atitudes. Que geram acções. E as que estão a ser geradas são terceiro mundistas, por gente que nem usa o pensamento. Para quê eles próprios lerem, estudarem, pensarem? Usam apenas os modernos manuais do grande filósofo Tiririca e do tio Patinhas.

Por enquanto temos fome, doenças físicas e mentais agravadas pela austeridade brutal, mulheres que morrem pela violência e discriminação, homicídios fruto de uma sociedade violenta, suicídios, crianças mal nutridas, homens e mulheres sem perspectivas, velhos sem cuidados. Países sem direito a educação, justiça, e a saúde para todos.

Todos temos o dom de pensar e a obrigação de usar esse pensamento e o coração, para servir os melhores interesses e a qualidade de vida da humanidade. Essa é a minha visão da vida.
Os seres humanos vêem com o cérebro não com os olhos. Usemo-lo em conjunto com o coração para sermos dignos desta grande experiência que é a vida.


Num lugar onde educação e cultura cada vez têm um papel mais irrelevante para não estimular o pensamento, aceito gente que pense de forma diferente da minha, mas assumo-me intolerante para quem tem uma visão terceiro-mundista da vida. Sem pensamento ou sem coração.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Peço uma aclaração…

http://www.videosvirais.com.br/esse-jornalista-explicou-para-os-americanos-como-a-fifa-vai-arruinar-o-brasil

Na espuma dos nossos dias,

Peço uma aclaração…

Experimentar a infelicidade não é uma tragédia, é experimentar a vida. Mas experimentar infelicidades permanentes e simultâneas é dar à vida o sinónimo de tragédia.

Um polícia existe para salvaguardar a lei e os cidadãos. Se um cidadão comete uma infracção e for multado não lhe diz: escolhi-o mal, não se está a portar bem ou ainda, o senhor agente é um irresponsável…
Irresponsáveis somos nós quando escolhemos mal os nossos governantes, os potenciais governantes que se blindam em estatutos para não largarem as rochas partidárias como as lapas, os representantes na Europa, na Europa quem manda em nós, e até os seleccionadores e os jogadores segundo leio.

Não me podia importar menos com o futebol. Mas se o futebol fosse desporto como já foi, talvez ficasse mais sensível. Como desporto nada me diz e como prática pouco honesta de competir quando envolve a organização que conhecemos, perco ainda mais a sensibilidade. No entanto tem algum reflexo com a vida infeliz no nosso país. Somos cá dentro (e na selecção) fracos e sem brilho. Lá fora, irradiamos carisma. Cá somos pisados como uvas. Lá, também.

Não ligo desporto com a realidade política/social. Mas é inevitável não sentir desgosto por ter de viver numa realidade infeliz no dia-a-dia, onde a mentira e a manipulação até à fome são quem nos governa onde o único alívio cómico nesta tragédia que vivemos se chama futebol. Que apenas alivia um pouco a tinta borrada da máscara do mundo feio e inóspito em que vivemos.

É inevitável não sentir desgosto ao ter consciência dessa máscara. Temos pés para andar na cultura sob as várias expressões de arte, música, letras, teatro, em várias profissões, na Educação, na Ciência, na tecnologia, mas não temos solas nem chão para pisar. Nem nunca mais vamos encontrar empregos. A não ser alguns poucos artistas protegidos. Também os do futebol. E os artistas da política. Esses é que merecem camas feitas com espigões.

É inevitável não ver o chão da política, do desporto, da cultura, da vida em geral manchado de sujidade. É inevitável não querer continuar a querer escolher entre dois males. Acabamos sempre com um mal. Que nos leva a nova tragédia.

Se houvesse justiça poética como nas tragédias, a final seria entre duas quase rainhas, a dona Letizia e a dona Dolores e não entre a Dona Merkel e a Dona Dilma. Hoje estamos azeitados, mas se não mudamos de guião vou-me refugiar louca, numa torre na Zarzuela para me esquecer que o mundo gira nos pés da insanidade.
Somos mesmo camelos sem aclaração!