Micro
Conto,
Ele
chegou sem avisar. Aproximou-se lentamente sem pedir licença. Encostou-se-lhe
ao braço. Que olhar sereno disse.
Sorri-lhe. Vem com os aniversários. Quando deixamos a vida acontecer. Posso-te
fotografar? quis saber ele demorando-se no olhar. Sim, se quiseres disse-lhe
ela, com um ar sem muito interesse. Vamos deixar a vida acontecer num jantar?
Na companhia de quem gostamos, uma refeição cuidada e um vinho alentejano em conversa
sem fim e sem princípio. Humm…prefiro vinho do Douro disse-lhe ela, olhando-o
pela primeira vez com atenção. Ele continuou, e eu é que cozinho. Está bem, não
vamos ter a primeira discussão. Desde que eu possa dançar à volta da mesa. Ele
estendeu-lhe a máquina para ela olhar a sua própria imagem. Parece-me que te
conheço desde sempre. Posso roubar-te um beijo disse-lhe ela? És uma feiticeira
disfarçada de anjo disse-lhe ele, enlaçando-a pela cintura.
Como
num livro que se abre e conta as histórias que encantam vidas, a vida de ambos
abriu-se num livro com uma história comum, caminhando em paralelo. A vida
demorou-se nos dois. Ambos se redimiram afogando os sentidos no oceano de
prazeres e sabores que tinham para se trocar.
Durante
anos dançaram, jantaram alternadamente pratos feitos por ele e por ela.
Juntaram fotografias a dois. Beberam vinhos doces, vermelhos, secos, maduros.
Partilharam frutos trocados nos lábios, com beijos quentes. Dormiram
aconchegados no ninho que o corpo oferecia. Ele deixava-a adormecer enquanto
lhe murmurava poemas ao ouvido e velava-lhe o sono. Despediram-se um cento de
vezes mas regressavam sempre para o outro. O reencontro, combinavam, era no
mesmo lugar da primeira vez.
Ela
não apareceu da última vez. Ele permitiu que o tempo infinito se demorasse a
esperá-la. O peso da ausência dela deu lugar à leve melancolia do vagar dos
dias.
Sufocava
nas lágrimas. Sem pedir licença ela chegou e deitou-se ao seu lado lentamente.
Não se preocupou em fingir que não chorava. Ele respirou profundamente e com um
último esforço, encostou-se-lhe, procurando o calor que o corpo dela emanava.
Posso roubar-te um beijo pediu ela? Num suspiro junto de um murmúrio ao ouvido,
como tantas vezes tinha feito, ele rogou-lhe para que não se esquecesse de lhe
roubar os beijos que tivesse vontade.
Voltaria
sempre para ela. Esperaria sempre por ela e ela tinha regressado. Ela
murmurava-lhe poemas ao ouvido enquanto lhe velava a partida da alma.
Roubava-lhe em silêncio os beijos que perdera. Beijos que carregavam palavras.
Procuraram demorar-se ao descobrir a redenção daquele momento. Nunca se tinham
perdido.
Reencontravam-se.
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