Amêndoas
doces de travo amargo
O rio era largo e muito
calmo. Generoso e tranquilo como ela. Profundo. Sabia para onde ia. Sabia qual
o caminho e não deixaria que o seu fluxo fosse interrompido. Na viagem, maravilhava-se
com as margens e seguia feliz, detendo-se para descansar nos pontos mais baixos,
correndo alegre nos pontos mais altos, apreciando cada instante. Como Íris.
Há horas que viajávamos.
Escolhemos o comboio por ser a forma de observarmos o que a vista pudesse
alcançar e com ela absorver a beleza das paisagens que se ofereciam.
Viajar de comboio é como escutar
uma partitura musical. O fim não é chegar ao fim da viagem, é estar na viagem
até ao fim.
É ir descobrindo as
sensações e experimentando o espanto, o assombro das descobertas. Como em
qualquer viagem. Retiramos dela o que dela fazemos nascer. Ficamos com o que aprendemos
do que observamos.
Falámos pouco. Não era necessário. Entendíamo-nos também no
silêncio. Foi uma das razões que nos fez ficar um com o outro ao longo do tempo.
Íamos para junto da minha família
contar-lhes a nossa decisão. Sermos pais. Dar continuidade ao nosso sangue. A
nós mesmos. Saber se seríamos capazes de dar a mão na construção de uma
terceira vida era a nossa próxima etapa.
Um caminho como o de tantos outros à
nossa volta. - “Não quero ir para mais lado nenhum. Apenas ir, nesta estrada,
nesta direcção contigo”, dissera-me Íris. Não se arrependeria, assegurava-lhe
eu, espantado com o destino que me conquistava cada dia, com a sua rasteira de
sabor perfeito.
As nossas mãos davam-se em
silêncio e no silêncio tamborilavam os dedos. Pousadas nas coxas desta bela
mulher.
Ouvíamos a cadência do
ferro sobre os carris como se se tratasse de uma sinfonia. Lentamente o sono
apoderou-se de nós e deixámo-nos envolver pelo ritmo. Adormecemos com as
cabeças a tocarem-se.
Não fazia muito tempo que nos
tínhamos deixado vencer pelo sono quando chegámos ao nosso destino.
Íris era uma mulher linda
de longos cabelos negros, revoltos, que tantas vezes prendia com lenços
garridos ou em tranças, nariz afilado, olhos pequenos cor de amêndoa. Corpo
pequeno de formas generosas. A pele de seda, negra como azeviche, demorava-se
nas minhas mãos, tantas vezes me perdia a acariciá-la com admiração.
Tudo nela indicava
generosidade. Viria a saber que era muito mais que generosa. Por detrás das
maneiras simples e educadas, escondia também uma enorme ferocidade de carácter.
Quando olhou para mim,
naquele fim de tarde à saída do metro e me pediu desculpa, fiquei preso.
Rendido ao tom de voz, ao olhar doce e à maneira generosa com que me disse: ”desculpe”.
Se um homem se pode sentir subjugado e calado por razões desconhecidas, ali estava
eu sem saber o que dizer perante aquele ser quase frágil.
Vinha a sair apressado e ela
a entrar carregada de cadernos. Chocámos e o seu carregamento foi parar ao chão.
“Desculpe”, retorqui enquanto a ajudava a apanhar os cadernos que devolvi.
Olhámo-nos e sorrimos.
Sorriu olhando-me profundamente. Naqueles segundo senti que entrava dentro de
quem sou, sem me pedir licença e me escavava, procurando os segredos do meu universo.
Baixei os olhos por sentir a invasão. “Fica a saber os meus segredos” dizendo-lhe
carinhosamente devolvi o sorriso. Levantámo-nos e ela agradeceu, não dando
importância ao meu comentário.
Fiquei ali parado a
olhá-la enquanto se afastava depois de me agradecer. Bastou-me vê-la sorrir
para saber que aquele era todo o agradecimento que precisava dela. De repente
acordei daquele sonho momentâneo e já ela tinha desaparecido.
Estava atrasado e precisei
de correr. Os ensaios corriam muito bem e a peça estreava daqui a poucos dias.
Tínhamos decidido que começaríamos mais cedo até à estreia. Comecei por isso a estar
ali àquela hora, naquela entrada do metro. Durante os dez dias que restavam até
à estreia, naquela entrada, todos os dias à mesma hora esperava vê-la.
Todos os dias ia a correr,
atrasado para os ensaios. Todos os dias perdia um pouco da esperança que me
animava de poder reencontrá-la. Todos os dias se reacendia a esperança de ser o
dia seguinte o dia em que a sorte a traria até mim.
Sentia-me empenhado, vibrante,
com medo, angustiado e maravilhado. Era a estreia da peça e o teatro estava a
ficar cheio. Era hora de me preparar. O meu último pensamento foi para a
estranha de olhos avelã, pele azeviche, sorriso doce e generoso que em mim
tinha mergulhado e tão bem me conhecia.
A partir daquele momento o
meu personagem Hémon tomaria conta de mim e apenas teria olhos para se deixar cegar
pelo amor à sua Antígona. Até à morte trágica.
Acabou de se calçar quando
alguém entrou e colocou um ramo de flores na sua bancada. Lírios, a sua flor
preferida. Pegou num e guardou-o no bolso da frente. Olhou-se e agradou-se com
o resultado. Os seus amigos aguardavam-no para um jantar de celebração.
Não conseguia tirar os
olhos dela. Ali estava no grupo dos seus amigos que o aguardavam junto à porta
de saída dos artistas, enquanto recebia abraços e palmadas nas costas. Parabéns
diziam-me mais alto do que seria fácil ouvir. Mas não os ouvia. Apenas tinha os
meus sentidos disponíveis para ela.
A curiosidade dilacerava-me o coração. Quem
era? O que fazia ali? O medo aprisionava-me a mente. Não a deixes fugir! Corre,
agarra-a.
Não me podia distrair e
sem poder fazer muito, entreguei-me aos abraços dos amigos com a atenção
redobrada para ela.
Um dos meus grandes amigos trouxe-a até onde eu estava.” Jules,
esta é a Íris, minha colega assistente na faculdade e apaixonada por teatro. Se
o meu melhor amigo estreia hoje, tinha de a trazer, afirmou muito seguro”. E
continuou, “ convidei-a para o nosso jantar, para ver se larga os cadernos. O
mundo do teatro e dos artistas é sem dúvida mais interessante e rico do que os
trabalhos insonsos dos seus alunos”.
Quase que ali mesmo me
poderia ajoelhar em forma de agradecimento ao meu amigo Paul, como um tonto apenas
sorri enquanto tirava o lírio do bolso e lho estendia, “Íris não te deixo mais
ir embora. Serei o teu caderno de poesia”. Ao meu amigo que nos olhava
serenamente apenas comentei “a Íris conhece-me já muito bem” afastando-me com
ela,-“e eu quero saber tudo dela”.
De tudo me lembrei quando
olhei para Íris, antes de a acordar quando chegámos ao nosso destino.
Continuava a sentir-me maravilhado por ter encontrado tamanho tesouro como
Hémon se sentia ao lado de Antígona.
Os sentimentos não precisam ser
representados. Representam sim e encerram a vida da nossa condição humana. Os segredos
da nossa natureza.
Depois daquela noite as
minhas representações foram-lhe sempre dedicadas.
Neste dia que o sol
castigava com pujança a minha alma vestida de negro, cor da pele de Íris,
fazendo-me lembrar a força da vida, sentado na companhia do rio, agarrava a
caixa de madeira esculpida de um pequeno tronco da terra dela, que Íris mandara
fazer a um artista de um mercado de rua. A caixa tinha esculpida uma máscara,
símbolo das tragédias gregas representadas apenas por homens.
Premonitória
pensava eu agora. Nela guardei as suas cinzas e agora repousavam-me nas mãos,
queimando-me, ali sentado numa das margens do rio. A vitalidade do sol
lembrava-me a sua vida.
Para mim já não havia vida com direcção. Não tinha
desejo de me levantar. Não sentia vontade nem pressa de a entregar. Era a chuva
fértil dos seus olhos cheios de vida que tudo fez desabrochar. Que com ela
terminava.
Continua...
Pintura de Sidney Cerqueira
Sem comentários:
Enviar um comentário