terça-feira, 24 de junho de 2014

Micro conto - Ausência


O lugar era perfeito. Sentia-se esmagado pela simbiose das cores, da luz e da energia que emanava da vegetação junto às águas do rio. Hoje ele também se sentia com aquelas cores, com aquela luz e energia que pulsava no sangue.

Quantas vezes a sua câmara captava os reflexos das sombras cinzentas da sua alma. Ali parado, com a máquina pendurada ao pescoço sonhava de olhos abertos. Sonhava a cores. O rosto dela estava ali à sua frente. O sorriso rasgou-lhe o rosto inesperadamente e brilhou sem razão. Por todas as razões aquele talvez fosse o melhor retrato a cores da sua vida que lhe tirava. Nunca o revelou.

Sentia de novo o momento em que sem pensar na razão teve vontade de a voltar a abraçar. Ela entregara-se sem pensar nalguma razão para não o aconchegar no peito.
Permaneceram a olhar-se. Sem fim.

Recordava-se agora sozinho e esculpiu o seu corpo na imaginação, nesse lugar secreto onde gravou a sua imagem.
Tinha marcas da ausência dela. Insuportáveis. Indeléveis. No corpo as deixadas pelo cheiro. A dor que sentia vinha da pele pêssego colada à sua. Na boca o beijo magoado com sabor a sal quando se misturaram as lágrimas de ambos.

O destino entretinha-se com brincadeiras misteriosas. Certamente que era algum anjo sentado lânguidamente numa nuvem no jardim de Éden a escrever estórias. Deveria ter sentido de humor, pensou. Muito humor com ironia. E sensibilidade também ou não fosse um anjo. O sorriso aqueceu-lhe o olhar.

Quando a viu naquele lugar improvável uma luz encadeou-os na direcção do outro. Inexplicavelmente sem que o tivessem sonhado encontravam-se ao fim de anos de ausência. Anos que tinha deixado de contar. Ali estavam frente a frente.

Jorraram aos gritos as palavras silenciosas no abraço sentido a que se entregaram. De novo as marcas regressaram como se apenas tivessem procurado refúgio temporário atrás de uma gota de suor, depois da última vez que se tinham amado.

Sem razão para calar o que tinha ficado interdito de ser dito, deixou que as palavras saboreassem a leveza da liberdade. Lavou-se nas lágrimas que se ofereciam com as palavras que calara. Secou-se no abraço que ela lhe ofereceu.

Com desassombro rogou-lhe ela que nunca mais partisse, porque do amor, ela, nunca se tinha ausentado. Deram-se as mãos, rumo ao desconhecido que sempre tinha sido o trilho, que ambos sabiam ser o único que existia.

Ali parado, com a máquina pendurada ao pescoço sonhava de olhos abertos. Sonhava a cores.


Finalmente ia chegar a casa e revelar o retrato que nunca antes se tinha permitido revelar.

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