sexta-feira, 5 de julho de 2013

Confissões de uma menina que não envelhece, com uma vida extraordinária


Extraordinária: sinónimo de não conforme com o comum, rara, excepcional.



Escrevemos para tornar o nosso mundo individual eterno. Para não nos sentirmos presos. Para construir um arco-iris na vida interior.
Este arco-iris feito de retalhos de momentos e experiências vividas, é a justiça que faço ao coração que acaricia hoje e sempre as minhas palavras.
Num dia em que a lua se despedia do seu amor e este, o sol, a cobria com um manto leve de tons laranja, a luz do verão africano, numa certa latitude a ocidente, tive o privilégio de sair do meu mundo aquático dentro da mulher que se ofereceu para me receber e, iniciar o meu plano extraordinário.
Hoje quase a fechar meio século, permito-me a liberdade de confessar algumas das muitas razões por que o meu arco-iris tem sido extraordinário.
Quem me lê atura-me essa liberdade. Se alguns escrevem auto biografias aos 24, decidi deixar passar mais alguns anos para contar algumas pequenas histórias extraordinárias.
Sou uma pessoa com uma vida extraordinária. Pela qualidade e pela quantidade de aventuras. Mas sobretudo pelos momentos partilhados com pessoas que ao longo da minha vida a fizeram ser extraordinária.
São essas, dessas e sobre essas que quero acariciar.
Às vezes penso que escolhi uma vida para nela incluir muitas vidas.
Tem sido extraordinariamente rico, louco e vertiginoso o ritmo deste carrossel. Mas nunca poderia ter sido tão seguro sem a rede das pessoas maravilhosas e extraordinárias que me têm rodeado.
Desejada rapaz, apareci como a radiografia do meu pai. Hoje pareço-me com a minha mãe. Para que a vida não favorecesse nenhum em particular.
Os meus pais emprestaram-me aos meus pais-avós que me dedicaram as suas vidas. Poucos são tão abençoados. Eu fui. Começou com este facto uma vida extraordinária.
Para os primeiros foi o sacrifício mais duro de qualquer progenitor. Para os segundos o maior presente que se dá aos avós, ansiosamente à espera, como se a vida deixasse de fazer sentido se eu não existisse nela.
Todo o amor extraordinário contido nestas circunstâncias tão raras, com seres extraordinários, se veio reflectir na singular vida que tenho.
São muitos os momentos que têm tudo de extraordinário na minha vida com eles. Porque eles próprios foram seres extraordinários. Com vidas dignas de caber num livro.
Um dia quem sabe, inspiro-me e escrevo a riqueza das suas vidas. Com eles formei o meu carácter, aprendi a ser autónoma, a ser livre, a querer mudar o mundo, a não perder nunca o sonho de fazer da minha vida um momento extraordinário.
Estragaram-me com mimos e atenção. Cobriram-me de amor e sonhos. Também de amor à leitura, à escrita, à música, ao teatro, à dança e outras expressões de arte, como a arte de conversar, ouvir e até cozinhar.
E de ter a porta aberta de casa e do coração para receber.
Ainda sou uma viajante neste caminho mas espero que estejam ambos orgulhosos e a sorrir. Ainda hoje sou uma empreendedora de sonhos, lutas e conquistas.
Com os pais, após uma vinda aterradora de uma guerra colonial avassaladora, que encerrava sonhos desfeitos de vidas extraordinárias, de tal modo amarrotados que o coração negava reconhecer, veio o amadurecimento e a chegada à vida adulta.
Com muitas doses de insanidade e a descoberta de que tinha à minha disposição um leque de cores desconhecidas para pintar a minha tela.
Nesta vida que já era extraordinária, mantinha-se a porta sempre aberta aos ensinamentos sobre partilhas e trocas, onde nesta grande família a solidariedade e a reciprocidade eram a chave do entendimento entre todos.
Foram tempos extraordinários no seio de gente extraordinária que se excedeu e me proporcionou momentos de enorme raridade.
Este cenário de momentos duros, de perdas que não se ultrapassam se não formos extraordinários, de conflitos e rebeldia, também se fez no meio de música, dança, alegria e festas.
Foi essencial para o meu desenvolvimento e muito contribuiu para a minha maturidade. É esta família que eu aprendi a conhecer e a quem me liguei que torna também a minha vida extraordinária.
Vieram as viagens, viver em vários lugares e países, partidas, chegadas e muitas aventuras extraordinárias.
Vieram amores que tomaram posse, amores desfeitos, amores que se alojaram, amores que se desvaneceram.
Mas não houve um que não fosse extraordinário.
Com eles, mais um pedaço de uma vida extraordinária compõe hoje a minha manta.
Os amigos, todos os que foram, deixaram de ser, continuam a ser, os que nunca se perderam, os que foram reencontrados, os que chegaram como amigos e se transformaram em irmãos e irmãs e que hoje partilham a minha vida extraordinária, são pessoas extraordinárias.
Porque aceitam a minha insanidade, a minha loucura, o meu riso fácil, os meus cozinhados, as minhas mudanças de humor, as minhas irritações, as minhas mágoas e dores, as minhas incongruências, as minhas falhas, as minhas fragilidades, as minhas vaidades, os meus defeitos, as minhas arrogâncias e, extraordinariamente continuam ao meu lado.
Em quase 50 anos não sou fácil, não sou domesticável, não sou simples, não sou consensual, nem deixo de dizer o que a alma me pede para não calar, mesmo que pelo caminho faça estragos.
E tenho-os feito. Nas colunas do deve e haver, no entanto, somo mais conquistas. O que é um facto extraordinário.
Por fim, um dia a vida veio engravidar-me com o maior presente de todos: a maternidade. De um ser que nada tem ou teve de comum. É um homem extraordinário. Foi uma criança e um adolescente extraordinário. Louco como eu queria um filho.
Este ser extraordinário garante-me a continuidade da loucura pela liberdade, pela autonomia e pelos sonhos. A mesma loucura pela dança, pela musica, pelas artes.
Tão louco quanto eu pelo pulsar da vida. Ou é extraordinária ou não tem sal.
E o sal é o oxigénio das células da nossa imaginação. Sem limites. Simplesmente extraordinário.
Perigoso também, porque o mundo dele é um mundo interior muito rico e só dele. Onde às vezes só ele existe. Como o meu.
Mas onde todo o mundo cabe. Por ser assim, trouxe para as nossas vidas, mais filhos, vários irmãos e irmãs.
Que metamorfosearam uma vida já extraordinária como a minha, numa vida sublime.
Tão sublime, que extraordinariamente me recompensa com a dádiva de ser avó.
A todos e cada um da minha tribo, devo o facto de ser uma mulher que não figurando na forbes, sou imensamente poderosa com capital acumulado em contas off-shore situadas nas ilhas que são os vossos corações e que juntos formam com o meu, um arquipélago de amor absolutamente extraordinário.
De novo e coberta pela lua africana, que neste aniversário me faz uma festa, e, celebra comigo a chegada a esta data feliz, sussurro ao ouvido de cada um, obrigada por este bocadinho de partilhas. Por me deixarem ser e fazerem sentir extraordinária.
E em vez de serem vcs a darem-me os parabéns eu é que vos quero homenagear. A esta distância, celebro convosco.
Mi é dôd na bosot tud.

“Uma única certeza 
demora em mim: 
o que em nós já foi menino 
não envelhecerá nunca.”

Mia Couto, também ele nascido a 5 de Julho.
No poema "Declaração de bens" Do livro "Tradutor de chuvas"


E uma musica, claro, em homenagem a uma terra que também é minha Cabo Verde, que celebra hoje 38 anos de independência.


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