Extraordinária: sinónimo de não conforme com o
comum, rara, excepcional.
Escrevemos para tornar o nosso mundo
individual eterno. Para não nos sentirmos presos. Para construir um arco-iris na
vida interior.
Este arco-iris feito de retalhos de momentos
e experiências vividas, é a justiça que faço ao coração que acaricia hoje e
sempre as minhas palavras.
Num dia em que a lua se despedia do seu amor e
este, o sol, a cobria com um manto leve de tons laranja, a luz do verão africano,
numa certa latitude a ocidente, tive o privilégio de sair do meu mundo aquático
dentro da mulher que se ofereceu para me receber e, iniciar o meu plano
extraordinário.
Hoje quase a fechar meio século, permito-me a
liberdade de confessar algumas das muitas razões por que o meu arco-iris tem
sido extraordinário.
Quem me lê atura-me essa liberdade. Se alguns escrevem
auto biografias aos 24, decidi deixar passar mais alguns anos para contar
algumas pequenas histórias extraordinárias.
Sou uma pessoa com uma vida extraordinária. Pela
qualidade e pela quantidade de aventuras. Mas sobretudo pelos momentos
partilhados com pessoas que ao longo da minha vida a fizeram ser
extraordinária.
São essas, dessas e sobre essas que quero acariciar.
Às vezes penso que escolhi uma vida para nela
incluir muitas vidas.
Tem sido extraordinariamente rico, louco e
vertiginoso o ritmo deste carrossel. Mas nunca poderia ter sido tão seguro sem
a rede das pessoas maravilhosas e extraordinárias que me têm rodeado.
Desejada rapaz, apareci como a radiografia do meu
pai. Hoje pareço-me com a minha mãe. Para que a vida não favorecesse nenhum em
particular.
Os meus pais emprestaram-me aos meus pais-avós que
me dedicaram as suas vidas. Poucos são tão abençoados. Eu fui. Começou com este
facto uma vida extraordinária.
Para os primeiros foi o sacrifício mais duro de
qualquer progenitor. Para os segundos o maior presente que se dá aos avós, ansiosamente
à espera, como se a vida deixasse de fazer sentido se eu não existisse nela.
Todo o amor extraordinário contido nestas circunstâncias
tão raras, com seres extraordinários, se veio reflectir na singular vida que
tenho.
São muitos os momentos que têm tudo de
extraordinário na minha vida com eles. Porque eles próprios foram seres
extraordinários. Com vidas dignas de caber num livro.
Um dia quem sabe, inspiro-me e escrevo a riqueza
das suas vidas. Com eles formei o meu carácter, aprendi a ser autónoma, a ser
livre, a querer mudar o mundo, a não perder nunca o sonho de fazer da minha
vida um momento extraordinário.
Estragaram-me com mimos e atenção. Cobriram-me de
amor e sonhos. Também de amor à leitura, à escrita, à música, ao teatro, à
dança e outras expressões de arte, como a arte de conversar, ouvir e até
cozinhar.
E de ter a porta aberta de casa e do coração para
receber.
Ainda sou uma viajante neste caminho mas espero
que estejam ambos orgulhosos e a sorrir. Ainda hoje sou uma empreendedora de
sonhos, lutas e conquistas.
Com os pais, após uma vinda aterradora de uma
guerra colonial avassaladora, que encerrava sonhos desfeitos de vidas
extraordinárias, de tal modo amarrotados que o coração negava reconhecer, veio
o amadurecimento e a chegada à vida adulta.
Com muitas doses de insanidade e a descoberta de
que tinha à minha disposição um leque de cores desconhecidas para pintar a
minha tela.
Nesta vida que já era extraordinária, mantinha-se
a porta sempre aberta aos ensinamentos sobre partilhas e trocas, onde nesta grande
família a solidariedade e a reciprocidade eram a chave do entendimento entre
todos.
Foram tempos extraordinários no seio de gente
extraordinária que se excedeu e me proporcionou momentos de enorme raridade.
Este cenário de momentos duros, de perdas que não
se ultrapassam se não formos extraordinários, de conflitos e rebeldia, também
se fez no meio de música, dança, alegria e festas.
Foi essencial para o meu desenvolvimento e muito contribuiu
para a minha maturidade. É esta família que eu aprendi a conhecer e a quem me
liguei que torna também a minha vida extraordinária.
Vieram as viagens, viver em vários lugares e
países, partidas, chegadas e muitas aventuras extraordinárias.
Vieram amores que tomaram posse, amores desfeitos,
amores que se alojaram, amores que se desvaneceram.
Mas não houve um que não fosse extraordinário.
Com eles, mais um pedaço de uma vida
extraordinária compõe hoje a minha manta.
Os amigos, todos os que foram, deixaram de ser, continuam
a ser, os que nunca se perderam, os que foram reencontrados, os que chegaram
como amigos e se transformaram em irmãos e irmãs e que hoje partilham a minha
vida extraordinária, são pessoas extraordinárias.
Porque aceitam a minha insanidade, a minha
loucura, o meu riso fácil, os meus cozinhados, as minhas mudanças de humor, as
minhas irritações, as minhas mágoas e dores, as minhas incongruências, as
minhas falhas, as minhas fragilidades, as minhas vaidades, os meus defeitos, as
minhas arrogâncias e, extraordinariamente continuam ao meu lado.
Em quase 50 anos não sou fácil, não sou domesticável,
não sou simples, não sou consensual, nem deixo de dizer o que a alma me pede
para não calar, mesmo que pelo caminho faça estragos.
E tenho-os feito. Nas colunas do deve e haver, no
entanto, somo mais conquistas. O que é um facto extraordinário.
Por fim, um dia a vida veio engravidar-me com o
maior presente de todos: a maternidade. De um ser que nada tem ou teve de comum.
É um homem extraordinário. Foi uma criança e um adolescente extraordinário. Louco
como eu queria um filho.
Este ser extraordinário garante-me a continuidade
da loucura pela liberdade, pela autonomia e pelos sonhos. A mesma loucura pela
dança, pela musica, pelas artes.
Tão louco quanto eu pelo pulsar da vida. Ou é
extraordinária ou não tem sal.
E o sal é o oxigénio das células da nossa
imaginação. Sem limites. Simplesmente extraordinário.
Perigoso também, porque o mundo dele é um mundo
interior muito rico e só dele. Onde às vezes só ele existe. Como o meu.
Mas onde todo o mundo cabe. Por ser assim, trouxe
para as nossas vidas, mais filhos, vários irmãos e irmãs.
Que metamorfosearam uma vida já extraordinária como
a minha, numa vida sublime.
Tão sublime, que extraordinariamente me recompensa
com a dádiva de ser avó.
A todos e cada um da minha tribo, devo o facto de
ser uma mulher que não figurando na forbes, sou imensamente poderosa com
capital acumulado em contas off-shore situadas nas ilhas que são os vossos
corações e que juntos formam com o meu, um arquipélago de amor absolutamente
extraordinário.
De novo e coberta pela lua africana, que neste
aniversário me faz uma festa, e, celebra comigo a chegada a esta data feliz, sussurro
ao ouvido de cada um, obrigada por este bocadinho de partilhas. Por me deixarem
ser e fazerem sentir extraordinária.
E em vez de serem vcs a darem-me os parabéns eu é que vos quero
homenagear. A esta distância, celebro convosco.
Mi é dôd na bosot tud.
“Uma única certeza
demora em mim:
o que em nós já foi menino
não envelhecerá nunca.”
demora em mim:
o que em nós já foi menino
não envelhecerá nunca.”
Mia Couto, também ele nascido a 5 de Julho.
No poema "Declaração de bens" Do livro "Tradutor de chuvas"
No poema "Declaração de bens" Do livro "Tradutor de chuvas"
E uma musica, claro, em homenagem a uma terra que
também é minha Cabo Verde, que celebra hoje 38 anos de independência.
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