Peça
de teatro. Um diálogo entre dois personagens: O medo e a vida. Num dia
solarengo, uma casa pequena, uma pequena varanda, uns degraus. Medo e vida
vinham a atravessar a rua dirigindo-se a casa encontrando-se lado a lado.
Fingiam não se ver.
Confundiam
o dia e a noite. Sobrepunham-se sem limites. Eram de ambos e pertenciam-se. Mas
recusavam sentar-se a beber uma bebida fresca e olharem-se nos olhos. Na casa
que era de ambos.
Cruzavam-se
com demasiada frequência, desde tempos imemoriais, mas o medo do confronto
fazia-os olharem-se de soslaio, baixar a cabeça e atravessar com o olhar posto
no chão. Fingindo não se verem. Durante uma vida inteira.
Naquele
dia a vida, sentindo-se vulnerável mas determinada a não lhe dar mais poder,
reuniu as suas forças, indo buscar energia ao seu amigo sol; sem medo do medo
dirigiu-se-lhe convidando-o:
-senta-te
comigo medo, vou-te dizer o que penso de ti. Vou-te dizer porque me assustas,
porque me tens assustado e me deixaste marcas. Quero dizer-te que me vou perder
de ti… (quase sufocava nas próprias palavras que a assustavam. O medo tinha uma
força que nem ele próprio sabia, julgava a vida…).
Sentado
ao seu lado, o medo, com o semblante arrogante, carregado de desprezo
aproximou-se quase se colando ao ouvido da vida. Conhecia a sua força. Essa sua
consciência fazia-o desafiar a vida em permanência. Poucos o ganhavam. Poucos o
superavam.
“O
que será que tu vida medrosa me queres dizer?” Soprando-lhe ao ouvido, enquanto
se sentava observando o dia luminoso, com as cores garridas que a natureza
oferecia para que a vida se inspirasse a chamá-lo.
“Que
corajosa. Tão habituada estava a ser dominada por ele… No fundo a vida não
sabia nada de nada…”
-Ouve-me
bem medo, começou a vida ganhando coragem, inspirada pela voz que ouvia vinda
do coração: a criatividade e paixão são os únicos estados naturais que quero
conhecer na vida que me acontece. Farei para que aconteçam. Que sejam também o
meu epitáfio quando a minha irmã morte me vier buscar. Do passado todos trazemos
pérolas: as feridas cicatrizadas que foram cobertas com amor. São a referência
que hoje devem dar lugar à criação de novas asas. São as únicas asas que quero
que me acorrentem. Tudo o resto são hobbys, que levam ao cansaço e ao
aborrecimento, que por sua vez levam à morte…da criatividade e da paixão. À
morte da minha vida.
-Mas
para que queres tudo isso? Qual a razão de criares? Irás a algum lado com essa
imaginação? A criar? Isso é só poesia…ria-se o medo com escárnio
-
entende-me medo, quando nada temos, mais criativos nos fazemos. O nada faz
nascer a paixão por criar qualquer coisa. Mesmo criando um erro. Já não me
assusta errar. Torna-me mais humana. Mais igual a todos. Nesse estádio sinto-me
a única parte de um todo imenso. Ofereço as asas que a minha criatividade me
exige. As asas com que nascemos todos. Que por tua culpa e pela repressão não
abrimos.
Quando
uma criança começa a mentir aos pais: nasceu um contador de estórias. Um bom
pai anota e incentiva. Ensina as diferenças entre imaginação e realidade mas
não mata a criatividade. Nem deixa que um muro comece a nascer. Entre a
criatividade e o mundo assustador que cá fora a castra. Isso és tu que fazes…
Quando
uma criança começa a pintar as paredes da sala e do quarto, um bom pai coloca
telas e papel pardo pela casa e oferece canetas…
Todos
sabemos o bem que sabe estar à beira mar a construir figuras na areia. As
crianças não querem saber se o mar as leva na sua espuma. Um bom pai incentiva
e colabora. Para que o medo de errar e começar de novo seja limpo pelo sal do
mar. Mas tu chegas e destróis esses sonhos…
As
crianças atiram-se sem medo. Não sabem que não sabem gatinhar, andar, correr.
Fazem-no por intuição. Por instinto. Isso sou eu, a vida. Depois vens
tu…interferir…
Tu
medo, com a tua arrogância matas a criatividade, porque questionas a razão de
se querer muito fazer uma coisa, e incentivas o medo de errar. Não queres que
se deitem abaixo os muros onde nos refugiamos. Por ti medo…
-Tudo
isso é muito bonito, mas o meu papel é esse. Vou continuar a estar atento à tua
imaginação e fazer o que tenho de fazer: incutir-te medo. No fundo sou teu
aliado ao bloquear-te: desafio-te a saíres desse muro. Devias agradecer-me…
-A
partir de hoje, vou ser o melhor acompanhante da minha imaginação. Vou seguir o
fluxo da inspiração. Aceito o desafio.
Hoje
vou inventar estórias como se fossem verdadeiras. Com personagens como eu, ou
com seres que nunca vi e nem sei se existem. Como uma criança com amigos
imaginários. E oferecê-las para tocar outras imaginações. E voarmos juntas.
Hoje
vou tocar piano como se fosse uma criança a aprender. Como uma criança, não sei
tocar, mas na minha imaginação terei uma sonata de Mozart. Hoje dançarei mesmo
não tendo ritmo. Como uma criança, na minha imaginação, sou capaz de desempenhar
de olhos fechados a melhor coreografia de Isadora Duncan. Como uma criança,
hoje vou pintar todas as folhas que me apetecer mesmo que não saiba fazer mais
que riscos abstractos. Na minha imaginação terei trazido Velásquez à vida.
Eu
vida, vou dar vida à criatividade que nasce da junção entre a intuição e o
racional. Num lugar desconhecido. Vinda do nada e que se transforma.
-Porquê?
Para quê? Quis saber desdenhoso o medo, já com algum medo de perder
protagonismo.
-Porque
neste mundo profundamente doente, feito por doentes terminais de uma epidemia
desconhecida, talvez consigamos a cura através da criatividade. Não a matando.
Deixando que as nossas crianças sigam o fluxo da capacidade de criação com que
nascem. Na educação em casa e no ensino nas escolas.
A
criatividade é ditada pelos padrões culturais de cada era. Talvez porque a
matámos aos nossos pais, aos nossos filhos, esta era, está entregue a
“artistas” psicopatas sem coração. Sem emoções. Sem sentimentos. Sem
criatividade. Sem paixões. A quem castraram a criatividade. A quem deixaram que
o muro da revolta e da maldade fosse crescendo à sua volta. Porque tu medo, te
interpuseste. És o meu maior obstáculo! Sim, és!
-Eu
controlo! Basta olhar para os jovens doentes à nossa volta, o que fazem de
absurdo para se integrarem, aos políticos cuja única ambição e riqueza é querer
poder e dinheiro, aos gangs violentos, à exploração dos recursos da natureza
como se fossem infinitos e como se ela precisasse de vocês; aos seres que
disparam e matam indiscriminadamente, aos que em nome de um Deus qualquer,
deixaram que lhes escapasse o valor da vida…às tragédias que mulheres e
crianças sofrem…e tantas outras absurdas doenças humanas…
Sabes
a estória do Pedro e do Lobo? O medo levantou-se fazendo menção de se ir
embora. Estava farto daquela vida que o começava a assustar…sabes a estória,
continuou? Tanto medo por algo que não acontece, até que acontece…Ou então,
medo para dominar e ter-vos debaixo de um controlo apertado tão simplesmente. É
importante incutir-vos medo. Permanentemente. Vou continuar aí!
Soltou
uma enorme gargalhada que deixou um profundo sabor amargo e triste na vida…de
desamparo…
Para
a vida a decisão estava tomada, com a convicção que só as crianças têm perante
obstáculos: enfrentam-nos sem medo. Nem imaginam que a mão dos pais as está a
amparar. A vida era agora uma nova criança. Determinada a ser finalmente quem
tinha de ser. Alguma mão a iria proteger. A mão da confiança em si mesma.
-Vou
apelar a que se rompa o ciclo afirmou a vida! A destruir os muros. A escravidão
que nos deixa prostrados e rendidos a ti. Fazendo qualquer coisa criativa. A
minha vida vale mais do que o teu domínio. Devemos começar já hoje a abraçar a
criatividade. Vou começar já hoje a fazer qualquer coisa para criar. Criar para
viver. Amanhã vou acordar a sentir que essa é razão de existir: vivemos para
criar. No dever de nos encontrarmos, a criatividade ganhou todos os direitos da
minha vida. Sem mais perguntar: “para que faço isto?”. Não vou voltar mais ao
teu caminho medo. Não te tenho mais medo.
-Então
e se não te der dinheiro? Nem prémios? Nem sucesso, nem exposição? Nem fama? Ou
alimento? Ou poder? De que te serve a criatividade? Qual a razão para o
fazeres? És ridícula, imatura, tontinha!!
-Não
me demoves. Não tenho nada a perder. Aliás nunca tive, desde que tenho vida.
Mas tive medo. Em quantidade suficiente. Chegaste ao fim na minha.
Faço-o
para a minha evolução. Por ela tenho a obrigação, o dever e o direito de criar.
E tu medo, já não preciso de ti nem como aliado. Menos ainda como meu
obstáculo. Cresci. Tornei-me de novo uma criança.
Vai,
segue a tua estrada. Desejo que tenhas tu também uma re-evolução criativa…sem
medo de ti próprio…
Por
fim, olhavam-se de frente…sem medo. Cada um cumpria a sua missão.
Vida
e medo confrontavam-se, com a capacidade que vem unicamente da força criativa.
Finalmente,
cheia de vida, levantava-se para mergulhar sem medo na água transparente da sua
vida.
Fim
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