“O passado não conhece o seu lugar:ele teima em
aparecer no presente (Mário
Quintana )
Na espuma dos nossos dias,
Como certos amores. De vez em quando saltam do seu
lugar no passado e, revisitam-nos no presente.
Como certos desgostos, traumas,momentos de horror e
dor. Decidem sair daquele que é o seu lugar no passado, e tornam-se presentes
no presente.
O que será que devemos aprender? A História ao repetir
acontecimentos, ou ao trazê-los do passado para o presente, dá-nos a
consciência do momento de não resolução dos factos, acontecimentos, dores.
A ditadura deixou-nos nós para nós resolvermos e ao
longo dos 40 anos da nossa infância democrática, ainda temos de os desatar.
Aprendemos pragmaticamente que o 25 de Abril aconteceu
porque faltou dinheiro na ala militar. Ninguém queria a guerra colonial e o que
lá se ganhava não justificava o sacrifício de vidas. O dinheiro para esse fim
era irrisório.
Nem todos viviam por ideais ou sequer buscavam outro
modelo de vida. Foi um não momento de consciência de quebrar com a ditadura.
Houve uma sucessão de não momentos de consciência.
Desses não momentos de
ruptura alguns militares corajosos tomaram as rédeas e fizeram o possível. Mas
não a romperam.
Hoje sabemos que o estado deixou de ser uma pessoa
colectiva de bem. Hoje sabemos que os seus representantes eleitos desconhecem a
linha que os separa de representarem os interesses colectivos dos seus
interesses individuais.
Aceitámos a cultura da passividade, do conformismo, da
negligência, da inércia, do individualismo, do capital financeiro como destino
colectivo, do défice e de uma dívida fraudulenta feita em nome do
enriquecimento de um grupo de ladrões imbecis que actuam no palco do poder, do
consumo que nos sufoca a essência e separámos-nos da cultura da criatividade,
do pouco que necessitamos para viver, da criação da beleza, da participação
colectiva nas decisões da nossa vida e bem estar e da cultura da verdade que
advém de não precisarmos de quem nos controle e manipule.
Todos sabemos o que precisamos, todos somos capazes de
decidir. Todos somos capazes de pensar. Basta fazê-lo.
Estão-nos a fazer cair de cansaço através do ruído, fraudes,mentiras,
abusos de poder. Vou mantendo alguma sanidade e fazendo o meu ruído só para
dizer: o cansaço não me derruba, nem vou deixar que a banalização desses
factores se torne a normalidade.
Sofri na pele em Portugal antes 25 de Abril. Era uma
rapariga de origem africana de pele escura a viver no Portugal provinciano, de
bigode e lenço preto e com acesso condicionado à educação. Foi na educação que
me fizeram doer as maiores condicionantes.
Fui obrigada a ir fazer exames como
aluna externa. Porque era uma africana, de pele escura e rapariga. Não podia
ser a melhor aluna da escola e estar no quadro de honra como estava. Aconteceu
comigo. Entre várias situações de racismo, exclusão de tratamento desigual e
preconceituoso. Na escola e na rua.
Portugal era um país triste consigo próprio. Não
aceitava os que vinham das ex colónias, estava farto de si cá dentro, no
entanto ia e vai para fora e rapidamente se integrava e integra.
Continua um país triste consigo próprio. Acabou por
integrar os refugiados a custo. Eles deram um impulso gigante ao
desenvolvimento. Mas hoje e de novo é ainda mais pesado. A ver a sua população
sair e a não poder fazer nascer outras gerações para prolongar a sua imensa História.
Sim, não há renovação possível.
Quem está não pode ter filhos. Quem sair jovem
já não volta. Terá filhos noutros lugares. Esses virão colocar flores nas
campas dos avós e dos pais que cá ficaram.
Povo estranho pensava eu na altura. Ainda penso. Sou
metade de cá e não sou. Sou uma cidadã sem chão próprio, com o umbigo enterrado
em África e, ando por aí a observar, a beber experiências e a integrar o que de
melhor posso absorver. Com um desejo. Ver este chão tornar-se imenso. Poder
pode mas já é quase uma utopia, se nada se fizer.
Não me ofendiam nas ruas onde passava ou na escola
onde estudava quando me chamavam “preta da Guiné lava a cara com xulé”.
Fizeram-me desenvolver os músculos. Porque me atirava a quem me chamava assim.
Raro era o dia em que não chegava a casa com a bata sem botões. Hoje a minha
guerra é querer estar em paz.
Hoje não me atiro ao soco. Faço-o com a força dos
punhos nas palavras. Não aceitando que me humilhem, verguem ou vençam pelo
cansaço.
No dia 25 de Abril fui ver os tanques passar a Queluz.
Pela mão do meu avô que me foi buscar à escola e eu percebi a sua felicidade.
Estava colada ao seu sorriso que nunca hei-de esquecer. Há muito que entendia o
que ele me dizia. A liberdade era é e será sempre a revolução do ser humano.
Sem ela estamos condenados. Ali estava ela a chegar
finalmente. O povo tinha sido trazido à rua pela revolução. A revolução da
liberdade. O povo era a revolução da querida liberdade. Estávamos pujantes,
felizes. A partir de agora a liberdade estava do lado certo. De cada um de
todos nós cidadãos.
Deixámo-la de novo escapar-se. Afinal não se fez uma
revolução. Prometeu-se uma revolução e acreditámos. Com a entrada no Euro sem
regulação, explicações e ajustamento à realidade, até às dívidas e aos cortes.
Afinal o que se fez foi uma transição. Para outro
regime. Dívidas e cortes apenas transitam de ano, até à eternidade para os
cidadãos imbecis e controláveis.
É por isto que concordo com Mário Quintana que o
passado de vez em quando sai do seu lugar e nos revisita. Para nos relembrar
que temos esta lição para aprender, aceitar, limpar ou repudiar. Este regime é
uma traição à revolução.
Mata, reprime, rouba direitos, destrói
psicologicamente, sequestra a liberdade e a vida dos cidadãos, tortura e
oprime. Ninguém consegue ser um ser adaptado neste novo regime. Ninguém
consegue respirar. As nossas escolhas estão limitadas. Em nome de défices e
dívidas. Em nome de roubos,mentiras e fraudes.
Li na Segurança Social um poster que incentiva a
denúncia por parte dos cidadãos que sabem de casos de tortura psicológica, maus
tratos, abusos, violências. Aqui estou publicamente a fazer a minha
denúncia,mais uma vez.
Dos sucessivos governantes pós 25 de Abril de 74 que
abusam, maltratam, sequestram e torturam a vida dos cidadãos de uma Nação com
História.
A vida diz-me que há mais para além do que me querem
fazer crer. Tenho que relembrar o passado dia 25 de Abril de 1974. Porque a
alegria desse dia cessou e o que fazia o meu avô triste no dia 24 de Abril
ainda não. Não aceito as escolhas que fizeram por mim e para mim.
Não aceito dívidas ou fraudes em meu nome para toda a
minha vida, dos meus filhos e dos meus netos. Se morrer antes do novo 25 de
Abril ficam já a saber. Sou das que não aceita restruturar ou pagar o que não é
da minha responsabilidade.
Quero é uma auditoria aos que a fizeram. E a
responsabilidade deles em conformidade com os actos cometidos.
Não quero um Audi. Quero de volta a liberdade e a
justiça que me roubaram. Eu sou responsável pela minha e exijo-a com toda a
força.
Por isso opto por repudiar este regime com a força do
tanque em guerra pela paz, que vive em mim.
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