quinta-feira, 24 de abril de 2014

Tornar a nascer a 25 de Abril






"Não é possível dizer-te sempre coisas novas,
nem te é necessário ouvi-las.
O que importa é que sejas sempre novo,
que te desprendas cada dia do homem-velho,
e que a cada dia tornes a nascer." Santo Agostinho






Prometeram a festa do homem novo. Feita da promessa de uma vida em terra nova.

A a vida na pele de homens e mulheres era sofrida e muitos ofereciam-na como sacrifício pela liberdade.
Em troca da livre expressão e da livre escolha.
Em troca de terra. Em troca de casas com casa de banho e água corrente.
Eu trocava o retrato do Américo Tomás nas costas da professora na sala de aula, as reguadas, os ponteiros na cabeça e as orelhas de burro.
Em troca do progresso e de deixar no passado a filosofia “pobretes e alegretes”. A filosofia de mentes castradas e carregadas de preconceitos conforme fora ensinado, inculcado e moldado.
Sem polícias políticas, sem a morte de filhos em guerras em nome de um império sem sentido. Sem prisões e sem torturas.

Eu não sabia do homem novo que estava para nascer. Estava prestes a celebrar 10 anos mas já tinha sofrido vários tipos de descriminações na escola e na rua. E trocava-as por um homem novo que não descriminasse.

O “povo” vivia com dificuldades sem fim à vista. Oprimido, medroso, sem queixumes nem “pieguices”. Sabemos porquê!
Vivíamos abaixo das possibilidades da liberdade e de uma vida desafogada.
Não sendo este povo constituído na sua essência ou espírito da massa rebelde ou revolucionária, não teve dúvidas em ficar na rectaguarda dos militares e tornar-se a vanguarda ao sair a gritar liberdade, no dia em que acordámos com um homem novo numa terra nova.

Foi o que eu testemunhei quando saí para ver as colunas de Chaimites. Alegria, lágrimas, lenços a abanar. Também silêncio e preocupação. A incerteza do desconhecido gerava temor.
O meu avô falava-me de um homem novo, de uma terra nova. Ria-se de alegria. «Caíu o fascismo minha filha» disse-me. «Vem aí a democracia». Era um homem atento, culto e alimentava o sonho de me ver crescer em liberdade.

Nas minhas terras em África o sonho também era viver em liberdade numa terra nova feita por e com homens novos. 
Vi toda a família refugiar-se e amontoar-se como podia ao ser obrigada a vir para Portugal, na maior aflição que o coração pode viver. Fugidos, sacudidos das suas terras de uma vida inteira.
Ninguém os queria. Nem cá, nem lá. Eram colonizadores, eram exploradores, eram colonizados, eram gente comum que nenhum mal fazia e queriam apenas viver em paz e liberdade nas suas terras.

Num processo de fuga de guerras ainda hoje mal entendidas e mal explicadas. Até hoje, não expurgadas.
Já não entre irmãos tugas e turras, mas entre irmãos locais. Mas sempre irmãos.
Começadas pelos “turras” como eram chamados quando de lá saí muito pequena. Os turras lutavam pela independência dos seus territórios. Dos irmãos da “metrópole”.
Estes últimos odiavam de igual modo ir combater aquelas guerras e deixar que a terra se turvasse com mais sangue do mesmo vermelho. E não ganhavam nada com aquela bestialidade. Nem o dinheiro chegava.

Cá e lá, cada um conseguiu vencer a sua batalha. O Império caíu. O fascismo foi vencido, as batalhas fora de portas terminaram. 

Iniciou-se cá uma guerra interna política, económica, financeira e social. Ainda hoje não vencida.
Lá, os movimentos de libertação venceram as batalhas. Iniciaram lutas internas. De sangue, política, económica, financeira e social.
Numa guerra ainda hoje não vencida.

Hoje cá e lá, voltámos a ser pobres economicamente e eu não estou nada alegrete. Nem sequer tenho a alegria de ter liberdade de escolha.

Continuamos abaixo das possibilidades, porque numa «economia que sendo feita pela comunidade que são os homens» esta foi desbastada, desbaratada e roubada pelos falcões, abutres e chicos-espertos que se preparavam traiçoeiramente para rasgar a bandeira da conquista do homem novo, na terra nova.

A 24 de Abril de 74 rasgava botões da bata da escola quando me insultavam por ser diferente. A 25 de Abril de 2014 continuo a rasgar o que for preciso para me comprometer com a integridade e com a honestidade da promessa. 

Junto daqueles que acreditam que o esforço dos que me antecederam é a vanguarda do homem novo, numa terra que quero nova. Porque esta tornou-se cancerosa e só lhe resta um caminho, a extirpação das células malignas.

Nesta minha terra livre cá de onde o meu tetravô saiu de navio para ir para a minha outra terra lá, casar com a outrora escrava e depois colonizada negra do musseque, e, fez nascer filhos pele açafrão, olhos cacau e sangue vermelho, saúdo o 25 de Abril e os homens e mulheres que o fizeram.

Tenho todas as razões para buscar um novo paradigma. Em liberdade e por conseguimento do 25 de Abril. Para tornar a nascer como um homem/mulher novo. Nem que seja de assalto, num Chaimite, nas escadas da AR.

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