Entrelaçado,
«Vai que eu sigo-te. De olhos
fechados».
Entrelaçado em ti pensei eu sem
dizer, num nó que nos enlaça, sem a esperança de ser quebrado. Nunca.
Segui-a. Era esse o destino.
Íris de olhos cor de girassol a
nascer, doce como uma manga madura, semente da terra que a plantou na minha
vida, tinha sido adoptada por uma família europeia.
Filha de um militar na guerra
Ultramarina, o pai tombou ferido de morte num ataque a uma aldeia. O seu colega
de pelotão, sabendo da estória de amor do pai com uma mulher de uma aldeia vizinha,
morta no parto de Íris, prometeu tomar-lhe conta da filha até que a morte o
viesse acompanhar para outro nascimento.
Íris sentia-se reconhecida pelo
gesto do seu pai adoptivo que lhe oferecera uma vida tranquila. E um retrato
dos seus pais.
Guardava o retrato dos seus pais
sentados encostados a um imbondeiro. A mãe de chapéu largo que deixava entrever
o rosto negro de feições suaves onde os olhos se destacavam. Mel como os dela.
O pai deitava a cabeça no colo desta
mulher e percebia-se a expressão de amor rendido. Um soldado em paz pelo amor daquela
mulher. Um rosto delicado, olhos verdes, e cabelo quase branco. Não se
surpreendia pelo que unira aqueles dois seres protegidos pela imensa árvore que
os acolhia.
Se um dia tivesse um encontro com
o amor, pedir-lhe-ia que fosse para si o tinha sido e, por ela intuído, através
daquela fotografia o dos seus pais.
Era o que Íris lhe dissera desde
que se descobriram naquele laço onde as suas vidas se uniram, no dia em que os
seus corpos se chocaram. Naquele choque as almas entrelaçaram-se.
Agora velava-lhe a leveza das
cinzas antes de se despedir dela. Antes de a entregar à terra junto do imbondeiro
onde os seus pais tiraram o único retrato da sua vida. Na caixa com a máscara
embutida.
A máscara que era agora o meu
destino, embutida na minha alma. O resto da minha vida seria coberto por uma
máscara sem alma.
Ali naquele silêncio, ao abrigo
daquele imbondeiro, junto da sua protecção, recordava os últimos dias da minha
vida acabada, quando Íris partiu.
Ao chegarmos ao destino da nossa
viagem, a minha família ansiosa por finalmente a conhecerem, estava na estação
de comboios.
Descemos e uma onda de abraços invadiu-nos.
Percebi que Íris tinha todos conquistado.
Conquistava mais do que eu sonharia
num pesadelo.
Os dias corriam suaves como os
olhos de Íris. A barriga com um novo ser crescia como os troncos de uma buganvília.
Seguros, majestosos, vivos e oferecendo-se ao vento para lhes embalar as
folhas.
Íris insistia em irmos embora.
Via-a cansada, pouco participativa nas conversas e quando lhe perguntava como
se sentia respondia-me que eram coisas da gravidez.
Agora agarrado ao seu diário conhecia
também o que de mais íntimo sentia e abandonava-me às lágrimas que me sacudiam
o peito morto.
Senti sem que me dissesse, que
estava muito incomodada mas não percebia as razões.
Decidi que era hora de
regressarmos a nossa casa. Talvez precisasse de recolhimento no nosso ninho e
não de estar com a família que agora também era a dela, mas não deixava de lhe
ser estranha. Parecia ser essa a sua vontade.
Sentíamos que as nossas mãos
dadas comunicavam tanto quanto as nossas vozes. Por isso nos seguíamos de olhos
fechados e mãos dadas.
Nessa tarde ao regressar a casa
do meu irmão onde estávamos, encontrei um silêncio pouco normal. A música
estava sempre presente. Não nessa tarde.
Entrei chamando Íris. Nenhuma
resposta. Sentia-me nervoso e com uma angústia que me fazia sentir abandonado.
Entrei no nosso quarto e vi Íris na posição fetal, abraçada ao ventre, e um
rasto de sangue a envolvê-la. Não respirava.
Caí ao seu lado abraçando-a e
gritando o seu nome. Não dei pela entrada do meu irmão. Abanou-me e gritou o
meu nome. Olhei-o sem o ver e o seu olhar fez-me despertar de horror.
Apontava-me uma arma. Ergui-me perante o horror dos seus olhos injectados de
sangue.
Sem entender, sem consciência do
vazio que se abria nas nossas vidas avancei para ele. «Mataste-a? o que se
passou, o que se passa contigo?» quis saber louco de raiva.
«Rejeitou-me a mulher mais linda
que vi, a mulher que mais desejei na vida! Essa cabra só te queria a ti» soltou
num urro selvagem.
Não me lembro de nada mais para
além de me ter atirado a ele sem medo da arma que me apontava. Cego de dor, de
raiva.
A luta durou pouco. A arma
disparou-se. Ou disparei-a eu. Ou ele virou-a para si. Preferia que o tiro
tivesse vindo na minha direcção.
Como numa das muitas tragédias
que representei, o fim era desgraçado para todas as vidas que nela
participavam.
O diário de Íris ajudou a minha
absolvição em tribunal. Contava os avanços que meu irmão lhe impôs. De como ela
o odiava, rejeitava e sem medo o enfrentava. E de como por amor a mim silenciava
o seu tormento.
Sabia que eu tentava dar-lhe a família
que tinha perdido e via-me feliz. Foi resistindo às suas tentativas de
aproximação até ao dia infeliz em que o meu irmão, ousando tocar-lhe a fez
levantar a mão e bater-lhe.
Na manhã seguinte, quando saí
para ir comprar os bilhetes de comboio para regressarmos a casa e fazer-lhe a
surpresa, aconteceu o intolerável.
A catástrofe do fim da sua vida.
E da minha.
Como um dia Shakespeare tinha
imaginado e expressado um mundo intrincado de emoções na natureza humana, a minha
vida representava a arte, ou quem sabe a arte apenas reflectia sabiamente a
natureza dos humanos. Não voltaria a representar. Nem a viver.
Acabei de escrever o nó que me
estrangulava a garganta e a alma.
No silêncio junto do imbondeiro a
brisa que me secava as lágrimas trazia-me a voz de Íris. Trazia-me o seu
cheiro. Devolvia-me o seu olhar. Emprestava-me a carícia da sua mão na minha. Num
laço que nunca se desprenderia de mim.
Jules e Íris viveram na vida entrelaçados
para a eternidade.
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